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003 - Lua Cheia

O Teatro Lua Cheia já viu dias melhores.

Nos anos 60, este lugar era o epicentro da uma revolução cultural. Tribos urbanas se reuniam em suas panelinhas, transformando o lugar em um santuário para punks, hippies e artistas independentes. Mas tudo mudou depois do golpe militar, onde o local foi encarado como um bastião de revolucionários, o que forçou seu fechamento poucos anos depois.

Hoje, como um monumento à resistência, o Teatro Lua Cheia é um patrimônio histórico, tombado pelo governo após o fim da ditadura. Mas sua atual missão transcende as paredes do edifício; agora, grupos dedicados se organizam e se encontram para levar calor humano e refeições reconfortantes aos moradores desfavorecidos na região ao redor do teatro. 

As janelas estilhaçadas do estabelecimento eram testemunhas do passado tumultuado, onde o vento sussurrava entre os fragmentos de vidro ainda presos aos caixilhos de madeira. O letreiro acima das portas exibia o nome do local, porém as vogais 'U' e 'I' haviam desaparecido, arrancadas pelo tempo impiedoso que as levou para longe.

Duas minivans estavam estacionadas diante do teatro, com suas portas traseiras abertas e caixas de papelão espalhadas pelo chão. Dentro de uma delas, uma cozinha improvisada foi montada, com um pequeno fogareiro crepitante, uma caixa de isopor repleta de gelo e utensílios de cozinha à disposição.

Ao lado, uma mesa rústica foi montada, onde grandes panelas borbulhantes de sopa aguardavam ao lado de pilhas de tigelas descartáveis. O aroma reconfortante do caldo quente pairava no ar, o que logo chamou a atenção de transeuntes que passavam em busca de uma refeição quente.

Uma grande fila logo se formou, com pessoas ansiosas aguardando pela comida.

"Mas isso não vai nem encher minha barriga!" Gritou o velho no início da fila, exibindo sua bandeja contendo um pedaço de pão, uma maçã e uma pequena porção da sopa escaldante. "Eu quero mais! Mais! Encha minha tigela!"

"Desculpe..." Respondeu a mulher que servia o velho. "Mas há outras pessoas esperando também..."

Ignorando as palavras dela, o velho se inclinou sobre a mesa improvisada, quase derrubando a panela no chão ao agarrar a concha de sopa da mão da mulher.

"Cale a boca! Eu não estou nem aí!" Ele começou a despejar a sopa na própria tigela, fazendo-a transbordar. "Veja só! É assim que se faz!"

"Ah, por favor, espere!"

"Me desculpa!" Uma voz estridente interrompeu o velho, fazendo-o parar suas ações e voltar sua atenção para a fonte do som.

Uma garotinha asiática, com suas mãos juntas em um gesto de prece, fitava o homem idoso com olhos arregalados e uma expressão de tristeza. Sua mão direita estava enfaixada, enquanto seus cabelos curtos e escuros estavam presos por uma presilha de joaninha.

"Só damos uma porção de sopa e pão por pessoa!" Continuou a garotinha.

"Cala a boca, pirralha!"

A explosão do velho desencadeou uma confusão generalizada, onde alguns dos moradores de rua e outros voluntários tiveram que segurá-lo para que o mesmo não fizesse mais nenhuma besteira. A bandeja foi retirada de sua mão enquanto a mulher levava a criança para longe da baderna.

"Peço desculpas, senhor!" Disse um dos voluntários, levando-o para longe.

"Anda logo!"

"Já disseram que é um para cada!"

"Não tem bebida, não!? Quero bebida!"

Os demais moradores de rua berravam e praguejavam, enquanto a confusão continuava e a distribuição da comida se arrastava.

A mulher conduziu a garotinha até onde as caixas de papelão estavam dispostas no chão, apontando para elas.

"Miwa... Você poderia levar as embalagens vazias de volta para o carro?"

"Mamãe..." Disse a garotinha.

"O que foi?"

"Posso trazer a comida que tem lá em casa?"

Os olhos gentis da mãe se tornaram aflitos.

"Isso..." Ela hesitou, ajoelhando-se para ficar na altura da garota e segurar suas mãos. "Não podemos fazer isso agora."

"Por quê?"

A expressão da mãe se tornou triste. Ela pegou algumas das embalagens de papelão do chão e as entregou para a garotinha.

"Seja uma boa menina e leve essas embalagens, está bem?"

Depois de alguns momentos de relutância, Miwa finalmente pegou as caixas de papelão e as colocou sob o braço.

"Está bem..."

Ela se afastou, caminhando em direção ao carro com a cabeça baixa, enquanto sua mãe conversava com outro voluntário próximo.

"Cada vez mais pessoas aparecem..." Comentou ela.

"Será que haverá comida para todos...?" Ponderou o outro rapaz, com as mãos na cintura.

Ao ouvir isso, Miwa rapidamente guardou as embalagens na traseira da van e se apressou para o final da fila. Seus olhos vasculharam a multidão em busca dele, e seus lábios se curvaram para baixo ao perceber que quem ela procurava não estava ali.

Até que avistou alguém se aproximando pelo beco ao lado do teatro. Reconhecendo o rosto amigo, ela se dirigiu até ele.

"Boa tarde, vovô!"

Era o mesmo velho que havia dispensado os agentes do acampamento momentos antes, agora parecia ter ido até ali para conseguir uma refeição quente. 

"Olá, mocinha," respondeu o senhor, arrumando a touca na cabeça. "Veio ajudar de novo? Que boazinha."

"Errr... Hã...," Miwa juntou suas mãos, claramente envergonhada, começando a esfregar seus braços um no outro. "E aquele garoto?"

"Hm?" O velho ponderou por um momento antes de responder: "Ah sim, o seu príncipe? Se ele não veio, deve estar pela cidade como sempre."

"Eu sabia..." A garota respondeu, desanimada. Mas logo se lembrou de um problema maior do que aquele. "Hoje estamos com um problemão! Não vai ter comida para todo mundo."

As sobrancelhas do velho se levantaram. Ele tirou uma das mãos dos bolsos e se inclinou em direção à garota, fazendo uma concha com a mão enquanto cochichava em seu ouvido:

"Então, faça o seguinte..."