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Sombras na Capital

A chuva caia firmemente nas paredes do castelo, enquanto as chamas de uma vela, tremulavam na escuridão do meu quarto, ocupado por móveis chiques e cortinas finas, sopradas pelo vento vindo da porta entreaberta para a sacada. Na larga e ornada cama, descansava um homem robusto, com poucas mechas cinzas surgindo em uma grande juba. O clima frio começava a tomar conta do aposento, formando uma leve bruma sob os pés do leito e me acordando, o rei da nação humana.

— … Ah… — suspirei, após um longo respiro — … Esse som, e esse ar… quanto tempo será que faz, desde a última vez que pude senti-los?

O brilho da chama, revelava em meu rosto, cansaço e rugas, com olhos pequenos e embaçados que procuravam em volta, por algo mais que pudesse me lembrar do passado, enfim repousando-os sobre uma espada longa, ao lado da cabeceira, protegida por uma bainha de cor prata levemente ornada.

— … Ah… — seguido de mais um pesado respiro — … Cerca de vinte anos… Eu acho… Aquela foi uma longa noite — comentei puxando a lâmina para fora.

O quarto mudou lentamente, enquanto as memórias voltavam, fazendo com que as paredes, dessem lugar a árvores. O teto escuro, a um céu limpo e estrelado, o liso chão de pedra, enevoado, dava a sensação de grama e orvalho, o som dos cascos de cavalos se aproximavam calmamente, cada vez mais claros.

Estávamos no fim de nossa terceira noite fora das muralhas da cidade, saíramos por conta de um desejo egoísta meu, de encontrar aventura, emoção e liberdade. De alguma forma, eu havia conseguido um total de 32 pessoas para essa "expedição", dez de nós estávamos a cavalos, porém, todos já pareciam cansados. E depois de três luas, a cidade já sumira no horizonte, nossas rações também já estavam se esgotando e além de alguns uivos ocasionais, nada minimamente interessante parecia acontecer a nossa volta, mesmo após adentrarmos uma floresta.

Alguns escudeiros, carregando grandes bolsas em suas costas e escudos nas mãos, arrastavam seus pés pela trilha, resmungando em sussurros. Quando o capitão da guarda se aproximou de mim em seu cavalo manchado e disse — Vossa Alteza, talvez seja melhor nós voltarmos, nossas provisões estão acabando… e os pagens estão exaustos, e... Mesmo que voltemos agora, talvez tenhamos que abastecer em alguma vila pelo caminho, caso encontremos perigo, então… — parei meu cavalo, com uma leve puxada nas rédeas, olhei ao redor, com o capitão ainda reportando a situação, embora eu já não prestasse mais a devida atenção. A suave e constante, brisa da floresta, mal movia as folhas das árvores e arbustos, a não ser pelo incômodo constante da voz de meu amigo, o bosque estava em um silêncio que fazia parecer que até mesmo não havia um único animal por perto.

— Haaaaa… Muito bem… — interrompi o capitão Brayan — vamos retornar.

Aliviados, minha comitiva pareceu sorrir, quando no meio da ação de puxar as rédeas do meu cavalo para virar, uma voz fraca cortou o silêncio da floresta, agarrando minha atenção e me fazendo virar a cabeça repetidamente, procurando a sua direção. Depois de alguns segundos, a voz clamou novamente, desta vez, mais audível, porém ainda fraca, parecia uma voz feminina, um pouco rouca, mas jovem, talvez uma criança, na terceira vez, o grito já estava mais claro.

— Socor… ro… Me… ajudem… Alguém por… favor…!

— Vossa Alteza…

— Yeaah!! — bravejei, batendo as rédeas no pescoço do cavalo, que disparou em direção à voz. Pulando arbustos e troncos caídos, contornando arvores e galhos grossos, Orion, meu corcel, trotava o mais rápido que podia, por aquele labirinto verde e sombrio, mal iluminado pelas luas cheias, que atravessavam em feixes cada vez menores, as folhas da floresta, se tornando cada vez mais densa.

— … Pode ser uma armadilha… por isso estejam preparados — eu ouvi meu amigo gritar, pouco atrás de mim enquanto o som de passos e galopes começavam a ecoar.

O meu coração batendo e o vento outonal em meu rosto, finalmente podia sentir, a emoção que procurava. Um largo sorriso em meu rosto e a sensação crescente de que eu havia encontrado meu dever, enquanto eu me aproximava da lânguida voz juvenil que pedia por socorro, me guiavam sem excitação.

— Socorro, me ajudem, alguém… por favor, meus pais… minha aldeia — o apelo continuava.

Até que, num susto, saltando por cima dos arbustos, meu cavalo surgiu, do lado de uma jovem e pequena garota, de vestido simples, cor bege, bem gasto nas pontas, cabelo bagunçado, aparência fraca e lábios ressecados. Ela se assustou e caiu para trás, quase não se segurando com seus finos braços, ela tremia de medo, mas quase sem chorar, mesmo com as pálpebras irritadas e as bochechas vermelhas.

— Na… Não… por favor… ma… mamãe… hic… papai, eu… estou tão cansada… onde vocês estão?

Fiquei surpreso, aquela criança parecia que esteve correndo, em busca de ajuda, a mais de uma noite, descalça, sem parar, suja de terra e fuligem, a pequena menina tremia a cada fungada. Eu já me preparava para descer de meu cavalo, quando Brayan me alcançou, chegando de forma menos abrupta que eu, ele parou ao meu lado, segurando em meu ombro.

— Espere Vossa Alteza, deixe isso com a oficial Maeve, será mais fácil para a garota se acalmar.

— … Pois bem, que assim seja — respondi, após um breve momento, da forma mais calma e amigável que pude.

Uma névoa da qual eu não me lembrava começou a tomar conta da floresta e em poucos momentos se desfez levemente sobre meus pés, me mostrando as paredes de pedra do meu quarto, e uma vela apagada, quase toda derretida, em cima do criado mudo ao lado de minha cama.

— … Haha… Devo estar ficando velho… até minhas memórias, pesam em meus ombros agora — pensei comigo mesmo, enquanto procurava pela jarra d'água, que uma serviçal deixara ao lado da cama mais cedo. Tateando o escuro apressadamente, a cada segundo, mais ansioso, até esbarrar em algo e ouvir um tilintar seguido por uma sensação de molhado — Porcaria! — ralhei, me levantando, tentando evitar a água, e encontrar a sineta para chamar a empregada. Toquei-a, e um som de metal agudo, suave, ecou do quarto para o castelo, olhei então, na direção da porta, esperando ver a jovem moça de vestido preto e branco, com babados, que sempre respondia ao meu chamado de forma rápida e cautelosa. Mas nem um único som de passos se aproximou e após uns 3 minutos sacudiu o sino mais uma vez, e outras duas vezes mais depois, ainda sem resposta.

— Mas o que está acontecendo, onde estará essa garota — me perguntei em voz alta, ao me levantar e abrir a porta para o corredor, deixando para trás a cortina de meu quarto, balançando com vento gelado de uma noite chuvosa.

O corredor, mal iluminado, se estendia de um lado ao outro, e com a névoa do quarto se alastrando sobre o seu chão, o clima tomava um tom sombrio e sinistro a cada passo dado, meus instintos gritavam enquanto me aproximava do quarto da serviçal. Empurrei a porta de carvalho escuro, sem pensar muito, e um cheiro forte de metal invadiu meu nariz, fazendo minha cabeça girar e me jogando de volta em memórias. Porém, agora, eu segurava o punho firme de uma longa espada em forma de cruz, com o metal refletindo uma luz azul pálida, vinda da única lua, daquela noite, Morgana, um líquido viscoso e vermelho, começava a escorrer pela lâmina.

— Argh!!… Cough, pfft!.

O sangue cuspido acertou o rosto, do meu jovem eu, enquanto o corpo de um homem troncudo e de feição ameaçadora começava a pesar sobre mim, agora era o cheiro de queimado que tomava meu olfato. Joguei o cadáver para frente, e puxando a espada de seu peito pude, enfim, reparar no ambiente ao redor, construções simples de pedra e madeira, se espalhavam desordenadamente, ao redor de uma pequena praça com um poço. Os telhados de palha queimavam rapidamente, enquanto minha escolta lutava contra um bando de saqueadores, protegidos com armaduras de couro escuro, e armados com tochas e ferramentas de metal. "Talvez fossem camponeses de outra vila?" eu pensei.

— … Vossa majestade?! … Vossa majestade!!

— Ha, ha… E… Estou aqui capitão… Ha, ha… — respondi, ofegante.

— Precisamos tirá-lo daqui… É muito perigoso! — gritava o líder da escolta, enquanto se aproximava com um escudo levantado.

— Do… Do que você está falando — bradei, jovem, tolo e sem experiência, ao me levantar e firmar meu corpo, com um largo sorriso no rosto — a batalha mal começou… e ainda temos que encontrar os pais da garot…

Uma flecha, passou cortando o meu rosto em um zunido, me interrompendo com um susto, e me pondo em guarda, mas sem alterar minha excitação pelo combate. Vendo a situação, o capitão da guarda levantou sua espada, com a mão direita e a balançou em círculos no ar, enquanto jogava o braço esquerdo, com o escudo sobre o meu ombro, nos cobrindo e puxando-nos para perto da floresta.

— Ah!… Ei, espere um pouco… Argh, pare eu disse… O que, está fazendo Brayan, nós temos que lutar… os aldeões…

— Já chega príncipe Art! — gritou o cavaleiro com um rosto impassível.

— Mas… — respondi, agora com um sorriso levemente menor.

— Isto não é uma aventura… Não estamos em um conto de fadas…

Um estrondo pesado bateu no escudo, enquanto fagulhas pulavam por cima do metal, escurecido pelas sombras, o capitão, que hesitou por um momento, com uma feição de dor, voltou a me empurrar, o príncipe, enquanto os outros cavaleiros formavam uma defesa a nossa volta, tentando recuar para floresta. O som de flechas voando foi mais claro dessa vez, eram várias, em um segundo, zumbidos cortavam o ar, e em outro batidas estridentes soavam dos escudos e armaduras, em seguida gritos e sons de passos sobre a lama se aproximavam.

— Não deixem eles fugir — gritou uma voz rouca e gutural.

Centelhas voavam, enquanto uma luz, quente, vermelha e amarela, se espalhava pelos cantos, aumentado a cada segundo e se movendo ferozmente.

Surpreso, parei de lutar contra o recuo, e comecei a me focar e contar, o sorriso no meu rosto, deu lugar a uma expressão de raiva e desgosto.

— … Oito — sussurrei.

— … Ha… Hagh… O quê? — perguntou o capitão, já começando a se cansar.

— Dezoito, somos dezoito… — mais uma flecha voou, mas dessa vez sem um estalido — … de… dezessete… eramos 23 quando saímos da floresta.

— Sim…

— Então por que estamos voltando apenas em dezesseis!

A defesa ruía cada vez mais, diminuindo seu tamanho a cada flechada ou corte sem ruído respondido, os cavaleiros grunhiam e gemiam passo a passo recuando, gritavam em pergunta.

 — Não podemos mais segurá-los! 

— Capitão!?

— O que faremos?!

As vozes, grossas de homens e ferozes das mulheres ou tremulas dos jovens, ecoavam na minha cabeça, enquanto o cheiro de ferro subia por minhas narinas, quase me fazendo vomitar, o capitão começava a lacrimejar, de costas para seus soldados.

— Me desculpe… Me desculpem… Me desculpem, mas o rei me ordenou… o rei me ordenou a... a protegê-lo.

— … Esta tudo bem, Brayan… a culpa não é sua — disse o jovem, levantando sua mão e com a voz rouca — … Beran fulminis hryre, Iragewed!

Quinze raios de luz desceram de um céu limpo, como se cortassem a noite em irá, repetidas vezes, explodindo no chão em clarões de luz branca ofuscante. Em poucos segundos, o que era a visão de um campo de batalha sangrento e enevoado, se transformou num quarto de pedra, escuro, e rodeado pelo som da chuva. O piso pintado de vermelho, com o corpo de uma jovem, estirada sobre ele, vestida em um uniforme preto e avermelhado cheio de babados. Os cabelos, longos e jogados, a pele pálida como giz e os olhos, verdes opaco, sem vida, lagrimas secas, escorridas pelo rosto.

Eu, o rei, recuei, exitante, e aterrorizado, pensei em gritar por ajuda, mas não o fiz, me calei, por extinto com minha mão, observei devagar em volta, procurando por algo que faltava, algo que deveria estar no corpo, mas não estava. Uma lâmina, que pelo rasgo no vestido, deveria ser de uma espada larga, usada para atravessar o coração da pobre garota, da qual eu nem lembrava o nome.

— O sangue… Ele parece seco, então isso já tem algum tempo... Quantas horas — me perguntei, murmurando — eu a vi antes de dormir… ao lado… de meu filho…

Um pensamento terrível cruzou a mente.

— Arthur, Morgana e Melissandra — exclamei meio abafado — meus filhos e esposa, será que estão bem, não, não tem como os guardas não terem notado o sumiço de uma serva, e a presença de alguém tão vil, eles têm que estar bem…

Um som agudo me interrompe, seguido por uma brisa fria que cortante, gelando o sangue e me paralisando momentaneamente. Um clarão me cerca, sem som, a luz se esvai, e mais uma vez o ambiente mudou. A floresta e os soldados voltaram, meu jovem eu, herdeiro de um trono, segue com a mão içada aos céus, e a desce rapidamente, com a palma aberta e o braço apontando a minha frente, um vão entres os soldados que seguravam escudos. A voz não parece sair, enquanto feixes explodem em cor branca, cegando a todos e deixando apenas um barulho ensurdecedor de explosão e eletricidade. Assim que a visão volta, a escolta nota, aliviados, que os bandidos que nos cercavam, agora caem ao chão um por um, com exceção de dois ou três que parecem estátuas de carvão, com os pés plantados no chão.

O ruído, ainda nos ouvidos dos sobreviventes da batalha, vai lentamente reduzindo e se tornando apenas um zumbido, enquanto os cavaleiros, amazonas, escudeiros e escudeiras restantes, começam a pular, comemorar e ao que parece gritar de felicidades, com lagrimas escorrendo pelo rosto, e uma expressão que mistura alivio e tristeza. Algum tempo se passa, até que o capitão se recompõem, guarda sua espada e chama a atenção da comitiva, que rapidamente se reúne. Organizados, em um semi circulo naquele cenário que mistura, campo, floresta, ruínas e corpos fumegando, tudo em uma noite banhada pela luz azul da lua em um céu limpo. Ainda é possível distinguir dos corpos queimados, homens e mulheres, mas se eram, jovens ou velhos, isso nunca saberei, porque nos atacaram, também nunca descobri.

Limpando a garganta, o capitão começa — muito bem pessoal, sobrevivemos a batalha, mas ainda não podemos relaxar — disse ele, ainda com um zumbido no ouvido.

— A nossa missão ainda não acabou — gritei firmemente, deixando meu transe.

— Exatamente, ainda temos que retornar ao castelo…

— Mas antes, vamos apagar o restante dos incêndios e procurar por sobrevivente, e... — a voz dele tremeu — enterrar nossos aliados e os aldeões… que não tiverem sido… cremados.

— Sim, Vossa Alteza — responderam em um grito.

— Capitão, envie um escudeiro a floresta para chamar Maeve e o restante do nosso grupo também.

— Sim, senhor — ele respondeu, um pouco hesitante, mas aliviado.

Olhei para cima, a lua azul, Morgana, brilhava opaca, quase cheia, enquanto Merlin, a vermelha e menor, desaparecia lentamente em uma fina fase minguante, quase em seu fim. O mês dos ventos se aproximava do seu fim, mais duas noites e começaríamos a encarar um período complicado, de forte magia e baixas temperaturas. Mas a memória acabava ali, e eu me via de novo em meu quarto, segurando fortemente a bainha de minha espada e um laço branco manchado.

— Preciso encontrar minha família — pensei, sacando a espada e deixando meus aposentos, lancei meu lençol sobre o corpo da empregada, cujo nome não lembrava, entoei uma prece que meu pai me ensinara quando criança e caminhei pelos corredores de pedra, mal iluminados de meu castelo, em busca de algum aliado. O vento parecia soprar, não importasse onde estivesse, minha mente começava a vacilar, me lembrando que eu já não estava no meu melhor, talvez há muitos anos. A chuva de antes, pareceu se afastar, quando então comecei a ouvir uma comoção. Pareciam cavaleiros correndo, e eu já estava no salão de entrada, cercado pela escuridão, com apenas um reflexo da luz das luas entrando pelas janelas, junto de um vento frio e arrepiante, que se seguiu de alguns gritos.

Corri para a porta de carvalho escuro, e ouvi, calmo e sem vida, a voz de meu filho dizer — Ainda não meu rei, o palco pode ter sido um pouco bagunçado, mas sua aparição ainda deve esperar.

Me virei querendo abraçá-lo, e sem me importar, um brilho avançou contra mim, e então uma sensação fria em meu interior, seguida por um calor úmido sobre minhas vestes e a visão de um olhar firme, frio e vingativo.

— Ah… — suspirei — … Eu falhei, não foi?

— …

Os sons começaram a diminuir.

— … Me desculpe… meu filh… cough, cof — tossi sangue enquanto Merlin surgia por de trás de uma nuvem, clareando o salão, e escondendo meu sangue.

— ,,, — o jovem príncipe, permanecia em silêncio, encarando o portão, como se esperasse por algo.

"Me desculpe… Morgana… mas parece que nem tudo foi… como ele planejou…" tossi mais uma vez, interrompendo meus pensamentos, senti minhas pálpebras pesarem.

"… Espero que você fique bem… minha garota, meus erros foram grandes e agora… eles a atormentarão…" 

Voltei a escuridão, senti meus pés serem arrastados e ouvi alguns murmúrios ininteligíveis, e uma última memória me veio a mente, o rosto, sujo de fuligem, de uma bela mulher, com olhos finos e escuros, reluzindo nas chamas, e um cabelo castanho curto e bagunçado.

— … Mai.