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Lua Prateada

Um espectador? Talvez Aylin, ou como seus amigos próximos o chamam, Aylie, seja apenas um espectador. Enquanto viveu, acompanhou e marcou seu nome na história. Durante a campanha dos humanos contra os demônios, fora testemunha de uma falsa lógica de moral e ética. Na música, sentia paz. Nas lutas, o calor. Em meio ao amor, liberdade. Na dor, tornou-se forte. No ódio, a indignação. Nunca quis nada disso. Queria entender a si mesmo. Essa é a história de um jovem em busca do autoconhecimento.

Aylllie · Fantasy
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Memórias de um Tempo Distante

[...] Existem peculiaridades que diferem como dezesseis raças que vão além das diferenças físicas. Sendo claro, cada raça tem uma característica inata que, independentemente se seguirá o conceito de "bem" e "mal", A maldição cravada durante a Era dos Deuses Antigos impôs a cada raça um "mandamento". A humanidade, por si só, demonstra o seu mandamento a cada ato: A ganância.

***

- Prelúdio - Estudo Prático Sobre as Raças. Escrito por Lucius Themis, da Casa Themis do Leste de Likya.

***

Ano 1317 da Era dos Reinos Combatentes.

***

Os dias correram e as chuvas não cessaram. Estradas tornaram-se lamacentas, a maioria dos rios estavam inóspitos e os campos infestados com pragas eram cenas comuns. Em todos os cantos do continente, a morte estava à espreita por entre as águas e terras. Independentemente de qual seja a raça, todos estavam cautelosos com a situação atual.

No entanto, havia exceções e, no sentido explícito, o velho cego não se importava. Qualquer acontecimento ao redor do mundo não o despertava o mínimo de interesse. "Todos aqueles velhos decrépitos estão assustando os mais jovens com uma situação que vai se resolver naturalmente." Irritado ao encarar as chuvas, cuspiu. "Óbvio que estou pouco me fudendo para tudo."

Os dias seguiram em um piscar de olhos e, consequentemente, se acostumara a cuidar da criança. Nesse tempo, modificou toda rotina de vida. Além de cuidar da criança Luna, começara a reparar na própria aparência, fazendo a barba e aparando os fios do cabelo. Ainda o manteve longo já que gostava bastante desse estilo.

Tão alto quanto uma sequoia, ajustara a postura, mostrando seus imponentes 2,20 metros de altura. Os cabelos grisalhos, antes espalhados como os fios de vassoura, estavam alinhados, presos em um rabo de cavalo, chegando na região lombar. Era negro de pele clara, porém, a tez de sua pele se tornara mais clara do que o normal por causa dos longos períodos de chuvas no decorrer dos anos.

"Não pensei que no meio de minha aposentadoria, iria começar a cuidar de um pirralho dos Luna, muito menos um mestiço família real Naelyan." Nesses dias, confirmara a suposição sobre a família do garoto, mesmo que ainda haja coisas estranhas. Refletiu com calma. Sutilmente, afastou-se da criança, que permanecia em sono profundo, e foi até o lado de fora da cabana.

"Um Naelyan com doenças crônicas era algo impensável para mim. Aqueles desgraçados são imunes para quase toda doença. Ter um que tem tudo de ruim no corpo é estranho." Suspirou. Revirando os bolsos, encontrou alguns cigarros avulsos. Precisava deles. As folhas de latakia[1], estranhamente, o tranquilizavam eficientemente.

Quando a chuva o tocou, franziu as sobrancelhas. "Um velho homem deve poder aproveitar seu fumo em paz." Encarando com seriedade, moveu a mão esquerda de maneira suave. Uma prana cinza espalhou-se, criando quatro círculos mágicos simples. Estes formaram uma barreira que protegia a cabana da chuva em um raio de cem metros.

A cena parecia simples, todavia, se os especialistas em Arcana e Magia vissem, estranhariam totalmente pelo desperdício que é criar uma barreira da quarta etapa para proteger-se da chuva.

O velho cego há muito se esquecera de como utilizar magias abaixo da quarta etapa.

"No fim, é ridículo imaginar que não tem envolvimento externo aqui." Ironizou, imaginando a quantidade de problemas futuros. "Sei que não adianta fazer mais nada sobre..." Irritado, gritou aos céus:

— É sério? Como eu devo cuidar dessa anormalidade? Eu estou enterrado na merda mesmo. — Estava cansado. Canalizando a prana entre os dedos, a liberou em pequena quantidade de forma neutra para acender o fumo. — Considerando que veio pelo rio, deveria estar morto no momento que achei. Agora que penso de maneira lógica, devo mesmo criar esse garoto?

Pondo o cigarro na boca, tragou com vontade. Ao sentir a fumaça entrando nos pulmões, a tranquilidade invadiu seu corpo. "Sendo objetivo, o certo ainda seria jogá-lo de volta na baía. Reduziria os danos futuros (que com certeza terão) e eu não teria de me esforçar curando alguém que deveria estar morto. Afinal de contas, não sou um protagonista nem um homem bondoso no meio da estrada. Essa postura de idoso bondoso não combina comigo."

"Esses tempos já passaram".

Não demonstrou a mínima flutuação emocional. Diferentemente de quando o encontrou a primeira vez, estava esclarecido da situação e pensando racionalmente. "Ainda assim, meu 'orgulho' de ser humano e essa maldita ética de médico não me permitiriam fazer. Não conseguiria conviver com minha própria consciência. Tornaria essa minha mente fudida em um caos maior."

"Por outro lado, o garoto me fez recuperar um pouco de minha humanidade e, principalmente, vontade de praticar medicina." Soltou um sorriso amargo. "Mas, não sei se é uma coisa boa retornar para a medicina do jeito que o mundo está."

Sentiu-se tendencioso de modo involuntário.

"São tempos complicados para Magos e Bruxos. Farmacêuticos e boticários não estão em situação melhor. Cuidando dele, seria um motivo claro para retornar a ativa depois de tanto tempo e dar um jeito nisso. Conseguiria um tempo sem a igreja me incomodar e o garoto não viraria alvo deles apenas por estar comigo. Os esquemas deles são muito mais complexos. Tudo aponta para ficar com o garoto. Será o certo?"

Após pensar um pouco, tragou mais uma vez o fumo e sorriu ironicamente. "No fundo, já tomei a decisão. Acho que minha mestra concordaria."

Mesmo sem perceber, Aylin havia ocupado um espaço pequeno, porém, importante em seu ser. "Um garoto me impactou depois de alguns dias... estou ficando velho. Acho que sou inclinado a favorecer pessoas com olhos verdes."

O velho cego sabia. Na verdade, sempre soube. Tudo o que buscava era uma desculpa para justificar seus atos a si mesmo. Ficou irritado e um tanto decepcionado consigo mesmo. Nunca ficara com medo ou relutante em qualquer situação. Lembrou do passado e jogou o cigarro fora. "Eu mudei. A minha mestra estaria decepcionada."

"Mas, será que sou capaz de criar alguém? De... ter algo parecido com uma família? É um conceito estranho depois de tudo o que houve."

Uma lágrima escorreu. Sentindo um vazio interior, jogou o resto dos cigarros para longe e retirou a barreira, deixando as águas da tortuosa chuva o atingir. Numerosos pensamentos nostálgicos o tocaram, ele voou para longe, visitou momentos, encarando o passado.

"Esse garoto me lembra muito ela." Instintivamente, franziu os lábios. "Como será que ela está?"

"Já se passaram duas décadas... Sinto sua falta, mestra..."

Sempre evitara esse tipo de situação. Medo? Covardia? Raiva? Nem mesmo ele sabe a resposta do porquê tanto fugia. No entanto, agora, sentira a vontade de voltar. Encostando-se na parede, se permitiu ir até memórias distantes pela primeira vez em anos.

[1] Latakia é uma folha utilizada para tabaco depois de defumada. Especificamente falando, é a Latakia Cipriota. Mais detalhes: http://charutosebebidas.com.br/materias/cachimbo_latakia.html

***

Ano 1276 da Era dos Reinos Combatentes

— Mestra, o que devo fazer para resolver essa questão? A ligação do conceito de prana com os corpos dos Luna, humano e Sagrado são extremamente parecidos! — Fiquei nervoso. Foi a primeira vez em dezesseis anos que pedi ajuda. Não sei se ela ficará feliz.

— Deixe-me ver, garoto. — Ela sorriu. Parecia estar animada com a situação e vê-la dessa forma sempre me deixa feliz. — Essa é uma dificuldade comum. Vou explicar, então, pegue seu caderno, Arcelium.

Acenei positivamente (Parece que ela estava esperando, já que não para de sorrir e pular). Me distraí. Não consegui fazer outra coisa que não seja rir.

— Vai buscar o caderno, garoto! — Apontou para casa onde morávamos enquanto ria. Mesmo que parecesse estar com presa, a reclamação soou gentil. Não conseguia esconder a felicidade que estava sentindo.

(Por minha mestra, não há nada que não possa fazer)

Escutando sua voz, voltei a mim. Me apressei até meu quarto. Entrei pela janela em um pulo. Observei um pouco o céu para lembrar onde havia deixado as anotações de medicina. Rapidamente encontrei debaixo de uma pilha de livros.

Impulsionando os pés com uma magia simples de suporte, saí do meu quarto pela janela e saltei de volta ao jardim. — Pronto, mestra.

Me encarando com um sorriso de canto, inclinou a cabeça levemente para a direita. — Magia de movimento sem conjuração? Aprendeu rápido.

Orgulhoso, pus as mãos na cintura e sorri. — Sim! Orgulhosa, mestra?

Ela bagunçou meus cabelos e deu uma risada alta. — Claro! Todos esses anos, eu tive um total de cinco alunos e você, garoto, é o mais talentoso.

— Hehehe. — Apesar de rir, estava envergonhado. Claro, senti-me imensamente feliz com essa declaração (e admito que elevou um pouco meu ego).

— Bem, vamos começar? Pode falar

— Sim!

Nós dois mudamos nossa expressão, assumindo a seriedade dos estudos. Era uma regra dela. Durante os momentos livres, poderia agir de qualquer forma. Todavia, durante os estudos, provavelmente apanharia se agisse levianamente.

— Não consegui diferenciar o sangue dos Luna, humanos e Sagrados nem com métodos científicos, nem utilizando a prana, mestra. E não digo pela cor natural. Em um caso de envenenamento, por exemplo, os três sangues adquirem uma tonalidade vermelho escura. Me sinto envergonhado em dizer, ainda que pedi auxílio porque não vi perspectiva de conseguir identificar sozinho. — Fui sincero. Não adianta agir de maneira altiva ou estúpida; a mestra é não é estúpida.

— Então, é assim? — Ela suspirou. Baixando os ombros, sorriu. — Bem, se você conseguisse, teria de te mandar lecionar na Cidade de Syphir com os idiotas da União.

Senti-me engraçado, não obstante, pude ver que não era ironia, então, questionei. — Hm? Por que, mestra?

— Simples: Aqueles idiotas não sabem algo desse nível. — Tateando entre suas roupas, achou um cigarro, o qual acendeu e começou a fumar. — Nenhum deles sabe exatamente o porquê os Luna e os Sagrados sofrem modificações no sangue quando envenenados. A ideia amplamente aceita é que serve como um método de proteção. Claro, eu sei o porquê, ainda que seja algo que não devo contar.

— Entendi. — Não fiquei surpreso. Encarei-a um tempo e o fraco sorriso de canto que vi me deixou curioso. Seu olhar continuava afiado apesar de tudo. — Entendo-te não querer contar o porquê, já que é uma Luna, Mestra. No entanto, mestra, não negastes que há, de fato, uma forma de identificar certo? Afinal, não faz sentido, já que são três raças sistemicamente diferentes no geral. É como comparar Eloras com Humanos. São diferentes em essência. — Fazendo uma pausa para respirar, continuou. — Além disso, de acordo com a mestra, mesmo que não sejas uma Luna, é possível identificar, certo?

— Gosto de como você é inteligente, considerando que é um humano. — Sorrindo, parecia exultante. — Observe bem. Acho que você merece um vislumbre dessa vez. Certifique-se de lembrar os passos.

Concordei. Exteriormente, aparentava calma; no fundo, me senti bastante curioso. Eu já sabia que método a mestra utilizaria: Magia de Criação.

Conjurando em uma velocidade que sempre me deixa de boca aberta, sete círculos mágicos surgiram ao seu redor. De cor dourada e acinzentada, ela me permitiu ver os detalhes.

"Prana Sagrada com Prana da Alteração. Ao mesmo tempo, utilizar magia sagrada como ela faz é simplesmente maravilhoso. Depois disso, utilizando o poder de um mago da sétima camada e o conhecimento da anatomia das três raças, a criação é basicamente um clone perfeito."

"A vendo, mesmo sendo menor em altura, ela parece uma gigante para mim. Tão alta quanto uma montanha. Meio que me deixa feliz saber que posso ficar ao lado dela".

Sorrindo, minha mestra me encarou, orgulhosa. Ela sabia o que estava pensando e o quanto compreendi apenas de olhar para mim (não sei por que ainda fico surpreso quando ela o faz). Ainda que fosse apenas a ponta do iceberg, a análise deve tê-la deixado orgulhosa.

Usando movimentos sutis, cinco hologramas (talvez, Clones seja uma denominação melhor) foram criados. Três deles eram exemplos de fisionomia dos Luna, Humanos e Sagrados, e os outros dois, quadros de anotações.

Ela apontou para os três hologramas e começou a explicar. — Como você pode ver, internamente, as três raças são um pouco diferentes por dentro. A anatomia dos humanos é como o básico que aprendera. Nesse caso aqui, perceba as diferenças essenciais para os Luna.

— As veias sanguíneas são um pouco mais finas; as escápulas são menores por duas polegadas; o coração fica totalmente centralizado e os pulmões, menores por alguns centímetros, ficam mais aos cantos e um pouco mais para baixo. Mesmo que os órgãos dos Luna sejam menores, não afeta o funcionamento do corpo. Somos corpos feitos para a magia. É um dos motivos de um Luna nunca ultrapassar um metro e oitenta de altura e mesmo assim parecerem esbeltos. Essas diferenças não são perceptíveis externamente, de maneira que ainda é possível confundir um Luna com um humano.

— Sobre os Sagrados, tem uma diferença maior para os humanos. Seus órgãos são maiores e eles são estupidamente altos, com cada um ultrapassando facilmente os dois metros. No caso, sua estrutura física é diferente, pois alguns ossos são sobressalentes em relação ao resto do corpo, como por exemplo, a escápula.

— Ainda assim, é possível não conseguir diferenciar. Porém, um rápido exame com a Prana da Vida ou da Alteração deve lhe oferecer um diagnóstico claro. Basta ver.

— Eu entendi esses pontos, mestra. Mas, a questão é–

— A questão é que você quer descobrir pelo sangue, certo? Não seja apressado, idiota. É fácil, principalmente para você, que domina a Prana da Vida.

— ...o que isso tem a ver?

— Tudo. — Encarando-me como se fosse um idiota (não me incomodava, já que quando ela fazia, sempre tinha razão), prosseguiu. — Existe uma característica desse tipo de prana chamada <Visão da Vida>. Ela é um requisito se quiser ser o melhor médico. Ao utilizar a prana da vida para alimentar os nervos ópticos, consegue-se ter uma visão clara do mundo mesmo se estiver impossibilitado de enxergar ou não tiver os globos oculares. Sempre e quando os nervos que ligam ao cérebro estiverem lá, a <Visão da Vida> funcionará. Claro, são poucos que conseguem chegar nesse estágio e eu mesma não sei os detalhes de como conseguir.

— Entendi, mestra.

Ela se aproximou quando percebeu que ainda estava calmo (parecia insatisfeita de alguma forma). Como já estava acostumado, só encarei de volta, confuso.

— Idiota. — Ela disse enquanto me empurrava, o que fez com que eu caísse. Estirado no chão, tive uma visão clara do céu, então, não tinha o que reclamar. Não senti dor. Era um mago da quarta camada. No entanto, fiquei ainda mais confuso quando ela se sentou na minha em meus quadris. Não me deixara envergonhado, muito menos tímido (ela fazia toda hora). A encarei com mais curiosidade até que, com um sorriso tranquilo, perguntou:

— Quer se tornar um médico forense?

Não hesitei. — Sim.

(Quero seguir teus passos, mestra)

Sorrindo, sacudiu meu cabelo. — Tudo bem, irei te ensinar.

Naquele momento, não pude evitar de abraçá-la, o que acabou fazendo nós dois rolarmos pela grama já que ela retribuiu enquanto sorria.

Me fez perceber algo.

Respirei fundo e agradeci aos Deuses. De todos os anos, esse foi o momento mais feliz.

***

Ano 1287 da Era dos Reinos Combatentes

— Hey, mestra! — Gritei. Senti-me empolgado, pois, há vários dias não a via. Por outro lado, além da saudade, precisava de ajuda com as marionetes de ferro negro (custavam muita prana para pouco tempo de utilização. Parece inútil, mas, para um médico, é de suma importância).

"Também preciso testar a Teoria da Dupla Circulação. Se conseguir, além de dar uma segunda vida, poderei curar alguém qualquer tipo de situação sempre e quando não seja decapitação." Pus a mão na cabeça, suspirando. Quando me deparava com essa teoria (que eu mesmo criei), sempre duvidava. "Preciso testar".

"Esse é um dos problemas de viver longe da sociedade"

Enquanto me perdi em pensamentos (sempre acontece quando encaro seus curtos cabelos brancos ou olhos verdes), ouvi uma voz me chamar. Estava acostumado e abertamente feliz. Era minha mestra (nesse ponto, de tamanha distração, me esqueci de que tinha chamado ela). Fiquei vermelho.

— O que foi, pequeno Maylea?

Ela estava tranquila, sendo o completo oposto do meu lado. Paralisei, estarrecido e confuso. Toda a felicidade esvaiu-se com a mesma facilidade que viera. Estava com raiva. Não importa a situação, esse nome não me trazia boas lembranças. Ela não costumava me chamar assim. Tudo começou nesse ano e eu não sei o porquê.

— Por favor, mestra… me chame de Arcelium.

Ela pareceu perceber meu incômodo (eu sei que sim) por seu olhar ficar mais afiado, entretanto, ela optou por ignorar meu pedido e anda levei um sermão. Apesar de achar injusto, tenho que aceitar. É minha mestra, afinal.

— Arcelium Maylea, acredito que tenha lhe contado a história mais de uma vez. Por que ser tão fechado com esse assunto? Não quero que viva imerso no ódio e rancor.

Cerrei meus punhos. Durante anos eu enfrentei, e era impossível me resignar. Não me senti satisfeito. "Por que eu deveria estar satisfeito em ser um sacrifício?" Pensei, não ousando falar – não queria ser impetuoso.

Respirei fundo e a encarei: — Sei pouco, ainda assim não mudarei de opinião. Tu, minha mestra, cuja vida estaria melhor sem mim, salvou-me a custo de outras milhares. Por outro lado, meus pais e família de sangue, cujo ações me trouxeram a vida, jogaram-me aos lobos por um boato de profecia. Achas mesmo que deveria considerar os Maylea como família?

Estava revoltado. Não importa como fosse, não era uma situação cabível de perdão, pois não havia arrependimento do outro lado. Senti meus olhos encherem de lágrimas e não era tristeza – estava furioso. Senti-me injustiçado por não ter o direito de escolha. Que direito outros tem de decidir por mim?

Ela fechou os olhos. Não sabia o que estava pensando. Eu vi suas mãos tremendo um pouco. Senti medo. Talvez tenha sido agressivo demais na minha resposta? Não sei. Me arrependo um pouco, é verdade. Eu estou errado? Bem, no fim, não importa. Eu senti.

No momento em que voltou a abrir os olhos, não sei o porquê, senti-me no erro.

E as seguintes palavras me confirmaram.

— Talvez você seja muito novo para entender. Ou talvez, tenha que experimentar o fardo de teus pais. — Pausando com um leve suspiro, ela me encarou; e havia dor em seu olhar. — Não foi por qualquer outro motivo além de 'destino'. Você nasceu no lugar errado e na hora errada. Mas, existe uma verdade no que disse.

Não quis contestá-la. Não poderia. Como ela fez uma longa pausa, questionei para que houvesse uma sequência: — O que é?

Ela sorriu. Senti que nunca esqueceria aquela expressão.

— Não diga milhares, Arcelium Maylea. Por ti, meu aluno, não me importaria de dizimar centenas, milhões ou até mesmo o Continente de Vanaheim inteiro.

Esse foi o momento de virada na minha vida. aquele dia, não pude entender mera fração de toda importância.

***

Ano 1296 da Era dos Reinos Combatentes

— Me diga o porquê, mestra! — Gritei com toda a força dos pulmões (e provavelmente, arrebentei algumas veias nesse processo). Estava ferido gravemente e tudo que podia pensar era em retornar para o aconchego de minha esposa e carinho de minha mestra.

Mas, quando retorno, encontro minha mestra, olhando para mim com dor, segurando o corpo de minha esposa, claramente sem vida. Ainda em seu peito, uma adaga, cruelmente estocada no coração, que permanecia ali, exalando frieza.

Encarei-a fixamente. Não entendi o porquê de ela ter feito isso (ou melhor, talvez não queira saber se ela fez ou não). Não consigo entender. Essa cena na minha frente é absurda, irreal, estranho, bizarra e... assustadora.

(Mas, minha mente e coração me diziam: Não foi ela.)

Ela não parecia sentir nada disso e me respondeu, de maneira fria, com uma pergunta simples, a qual fazia todos os dias durante os trinta anos que passamos juntos.

— Pequeno Maylea, você acredita em mim?

Um choque percorreu meu corpo e eu travei. Meus pensamentos foram a loucura em meros segundos, no entanto, respondi instintivamente, mesmo vendo o que estava na minha frente.

— Sim. Incondicionalmente.

Não importa o que, não existe uma pessoa em que confie mais do que nela.

Notei que uma lágrima escorreu. Toda a frieza ao seu redor desaparecera, deixando apenas um lado frágil que nunca havia visto. Não resisti. Ignorei todo o massacre que me assustara e corri até ela.

Após um tempo (Longo tempo) estando abraçados, a afastei, enxugando as lágrimas de seu rosto. Não sei o que me deu. Não importava o que, senti que devia ajudá-la e que nada disso tem ligação com ela. Coloquei o corpo da minha esposa em um caixão de gelo (criei naquele momento. Apesar de não ser habilidoso com tal elemento, era uma magia simples.

— Arcelium, ajude-me a prender o cabelo. — Estava fraca. Ela soou como um pássaro entregando um último canto.

— ...Claro. — Me ajeitei, indo para trás dela. (Seus cabelos ficaram maiores nos últimos anos. Ela não os cortou.). Nesse ponto, enquanto trançava lentamente seus fios brancos, me distraí com suas palavras. Ela me disse toda verdade e, não importa o quão absurdo fosse, não conseguia não acreditar nela.

Fiquei aliviado (No fim, não foi culpa dela). Não tenho razões para não acreditar. Desde cedo, sei que os olhos enganam e, para minha mestra, a qual conheço e convivo desde que nasci, não há situação que me faça perder a fé nela.

No fim, ela me perguntou novamente: Você acredita em mim?

Novamente, a respondi: Sim, mestra. Incondicionalmente.

Ela sorriu. Aquele sorriso parecia capaz de apagar todo o massacre ao redor e me levar para o tempo em que tínhamos paz. (Paz? Palavra essa que não reconheço mais). Queria retornar ao tempo em que éramos apenas um mestre e aluno de medicina forense nas cavernas da Baía do Luar, na Floresta de Syphir (Quão bons eram aqueles tempos).

Conversamos por três dias e três noites, logo após enterrarmos os corpos, menos o de minha esposa. Não importa o quê, o levarei comigo. Já que não utilizamos magia, demoramos três dias os enterrando. Nesse meio tempo, pus minha esposa em um caixão de gelo e cuidadosamente o coloquei em minha Dimensão Espacial.

Entendi muita coisa, perdi outras, percebi que ainda não poderia saber nada sobre o porquê de tudo, seja de um modo ou de outro.

Esses três dias passaram rapidamente.

Na manhã do quarto dia, ela não estava mais lá. Seu cheiro permanecia no ar e é uma das únicas lembranças que tenho. No local onde suas coisas estavam, achei um prendedor de cabelo prateado. Suspirei, repleto de tristeza, pois a sensação que tinha era de que nunca voltaria a vê-la.

***

Ele caiu. As lembranças corriam, passando tão rápidas quanto o tempo e parecendo tão efêmeras quanto o desabrochar de uma flor. Todo seu ser estava em desordem e nada mais importava. Esqueceu-se da chuva e dos fortes ventos que cortavam seu rosto. A lama, que anteriormente subia até a canela, alcançara seu corpo graças ao impacto.

"E agora, não posso nem ficar em pé. O que eu deveria fazer?" Refletiu, oferecendo aos céus um sorriso triste. "Apesar de tudo, não sei o que houve. Não importou quantas vezes busquei, lutei, ou quase morri para saber; o resultado foi o mesmo: Nada!"

"Onde a senhora está, mestra?" As lágrimas secaram, deixando rastros melancólicos. Olheiras surgiram, fazendo-o exibir o cansaço através enormes bolsas negras.

Tentou se levantar, não conseguiu. Seu corpo, imundo, parecia não conter força alguma. Não houve o mínimo de vontade para sequer se mexer. "O que devo fazer?" Estava confuso. Comparado ao passado, nunca houve uma situação em que esteve completamente perdido igual a essa.

As horas correram a passos de guepardo. Não houve pausa nas chuvas e os ventos cortaram em demasia cada parte de seu corpo. O sangue misturava-se a lama em um ciclo infinito de derramamento de sangue lamacento e o processo de cicatrização, seguindo a coagulação sanguínea e criação de crostas.

Era deplorável.

"20 anos se passaram e ainda estou desse jeito." Ironizou-se pela centésima vez durante essas horas, soltando, em seguida, uma gargalhada horripilante. Uma tristeza profunda estava contida em cada ato.

Seguira nesse estado até escutar o som de um vaso se quebrando. "Esse som... veio do quarto onde o garoto está!" Assustado por motivos que não conhecia, utilizou a prana da alteração, eliminando qualquer impureza exterior de seu corpo e surgiu no quarto onde residia o garoto.

O velho cego conseguiu escutar o som do vento e sentir a natureza. Entendeu tudo. O tempo parecia não andar. Desespero o preencheu por completo em um nível completamente diferente. Ele não entendeu o porquê sentira tanta raiva por ver alguém tentando matar a criança. Não entendeu sua dor, nem o desespero – nem precisava entender.

Você. Vai. Morrer!

Sua voz, rouca e cheia de fúria soou como um chamado da morte ao encarar o ser que estava ali ao lado da criança. O afastara com intenção de matar. O ser não se movera, porém, não era por falta de vontade; era... Terror.

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