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Estigma de Hati (Português BR)

A mando de seu pai, Eldred é escolhido para uma missão diplomática nas longínquas Terras do Lago. Em sua ausência, seu irmão Elfrid atende a um chamado pernicioso numa vila distante a nordeste da capital real. As designações transformam-se num caos sem logica quando por descuido Osmund adquire um objeto que não deveria sequer saber da existência. Seu irmão por sua vez, cavalga a mercê das garras amaldiçoadas de uma sombra ancestral. Sem alternativa, são obrigados a receber auxilio dos mais obscuros e sanguinários mercenários do norte distante, os fieis de Hati.

OlmiroHSRosa · Fantasy
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Raposa

O céu oriental era de um azul metálico quando o sol surgiu, levando seus raios para além da imensa janela do salão de visitas da mansão do lorde das Terras Ermas. Eldred andava transtornado de um lado a outro, a longa mesa de madeira rústica e cadeiras adornadas com nada mais que pele de carneiros transmitiam a impressão de aconchego das pequenas moradias dos nortelungos, exceto pelo tamanho excepcional do cômodo, onde espadas, escudos e armaduras de tempos longínquos, carregando a austeridade da ferraria a qual foram confeccionadas, adornavam as paredes. O chão lustroso feito um espelho parecia alongar as sombras do homem.

O lorde se orgulhava de seu modo simplista, afirmando ao sentar à mesa com os filhos que quanto menos luxo um rei tivesse ao seu redor menos propenso seria a levar a luxúria a tomar as rédeas de sua vida.

Eldred se sentou na poltrona junto a imensa lareira, estalando de tempos em tempos, energizada por uma tora da largura de seu busto. Esticou as pernas e acariciou uma mecha de seu cabelo cacheado, levando os olhos melancólicos ao tapete imenso que se estendia à frente da lareira.

"Modo simplista hein... Com essa pele de dente de sabre exótica, de um animal quase extinto. Se eu fosse tão certinho como Osmund usaria cada oportunidade nos jantares para falar dessa pele, os deuses sabem que sim..." - Pensou ele.

Levantou-se e andou até a janela, deu meia volta e retornou a poltrona. Tomou seu objeto mais amado às mãos, uma viola marrom clara, esculpida do tronco de um carvalho de 300 anos, uma raridade tanto pela matéria prima usada quanto pela beleza de entalhes que compunham todo o instrumento. Uma raposa alada flutuava em meio a nuvens, embelezadas por duas ninfas de asas abertas, esculpidas e pintadas com maestria sobrenatural.

Um marceneiro do Sul das ilhas meridionais o construiu, e lhe foi tomado por um pirata num saque na província costeira que morava. O pirata, apesar da ignorância se deu conta da valiosidade do item e a grande quantia em prata que conseguiria, mas acabou deixando a bebedeira falar por si e perdeu o instrumento num jogo de cartas para Eldrid, frequentador assíduo dos mais variados locais inóspitos aos nobres, principalmente as tavernas.

Dedilhou algumas notas ao vento, fazendo ressoar pelo grande salão sua voz afiada numa melodia fraca e tristonha. Errou uma nota ao levar um de seus dedos trêmulos sobre o outro e se enfureceu, quase arremessando sua viola ao chão. Ao levá-la ao alto para desferir um golpe para o chão seus braços trêmulos pararam, o rosto se enrugou e transicionou de fúria para arrependimento exacerbado, abraçando o objeto com uma paixão compulsiva ao perceber a tolice que iria cometer.

Não conseguia reter o nervosismo que o assola desde que foi incubido daquela viagem. Temia cometer erros em sua empreitada diplomática na terra dos povos do rio. Passara os últimos anos frequentando prostíbulos, casa de jogos e tavernas num frenesi digno de inveja aos Orcs. Tinha receio que o pai cortasse a prata, o privando dos prazeres pelos quais amava de corpo e alma.

Se detinha na presença da família ao retornar curtos períodos da universidade, conseguindo com maestria fazê-los esquecer dos boatos nada adoráveis que chegavam a seus ouvidos. Tinha plena consciência da hipocrisia que tocava sua vida, encobrindo suas manchas por meio da lábia. Lhe doía admitir, mas era uma força invisível além do que podia controlar.

" Quão tolo eu estava sendo. Me tornei oque mais odiava, um azarado enrustido. Perdi a cautela nas saídas da escola eclesiástica e agora entrei num beco sem saída que pensei que nunca me meteria. Malditos soldados... Porque os diabos estavam preocupados comigo? Deveriam estar atentos a putas e rum. Quem em sã consciência vai para Elendril e não se detém nos belos e afáveis prostíbulos da rua vermelha? Maldição, mil vezes maldição!"

Havia voltado para casa a uma semana, após dois longos anos cursando finanças e música na academia de Elendril, a melhor e mais prestigiada dos seis reinos. Nutria esperanças que as péssimas notas e conduta não lograram aos ouvidos de seu pai, mas dois soldados que por acaso cruzavam pela capital resolveram se informar a seu respeito na universidade. Os professores inescrupulosos acabaram soltando a língua e revelando sua rebeldia irrefreável. Somente um velho de longos cabelos grisalhos e postura quase corcunda o elogiava com fervor, sem saber que era a única matéria que o rapaz participava inteiramente.

"Como se não bastasse ser encharcado por injúrias, agora essa missão... De que forma irei aprofundar relações com comerciantes do porto? Aqueles velhos astutos são como cobras venenosas espreitando numa moita. Devo estar acometido pela febre de Loki, não há outra explicação!"

Levou os dedos na têmpora e a massageou por um longo tempo, enfiando goela abaixo uma taça de rum vez ou outra.

"Seja como for, não admito ser enviado para a academia militar. Osmund pensa que desistirei, não poderia estar mais enganado. -Ergueu o dedo indicador para alto em auto-afirmação- Me recuso a treinar com aqueles grotescos capitães insalubres. Até mesmo seus olhos transmitem um odor pungente quando os direcionam para aqueles pobres miseráveis que por azar do destino pensaram que o exército seria melhor que os campos. Prefiro a morte por inanição... Ou quase, pois seria demais para apostar..- Se ergueu da poltrona fitando o fogo, pensativo -Poderia então sofrer mil chibatadas... Nao, nao, pelos deuses, o quanto isso doeria, seria demasiado!"

Enquanto se afundava em pensamentos a porta do salão se abriu, entrando por ela um homem vestindo um longo e fino gibão azul marinho, calças cinzentas e botas de cano baixo. Sua pele era de um pálido quase mórbido, seus olhos verdes cintilavam atrás de um pequeno monoculo pendendo no olho direito, mantido no lugar por pura insistência contra a gravidade, já que o cordão de ouro atado a ele segurava tanto quanto água numa tigela sem fundo. Caminhava austero enquanto a cabeleira ruiva ondulava, passando a mão no rosto e coçando a barba recém feita enquanto se aproximava.

-Meu querido e endiabrado irmão. - Abre os braços e o envolve num abraço caloroso -Pronto para sua gloriosa missão ou já pensa nas belas madrugadas de inverno que acordara junto aos recrutas? Ouso dizer que já o vejo nos belos gibões de couro surrados dos cadetes.

-Não diga bobagens, - afasta o irmão que insistia por tempo demais no abraço - quando se trata destes assuntos -Estufa o peito enquanto remexe as mãos numa pose austera- nao a nenhum homem dentro das fronteiras dos reinos humanos que não se detenha frente a minhas incríveis habilidades persuasivas.

Osmund leva a mão à boca segurando um riso frouxo. Dá uns bons tapas em seus ombros e o encoraja com fervor, apesar do tom de suas palavras carregar certo deboche.

-Disso eu concordo. Definitivamente quando trata-se de lábia, não há nenhum homem dentro dos limites conhecido pela humanidade que chega aos seus pés!

Eldred retira as mãos do irmão de seu ombro desgostoso pelo comentário.

Osmund o injuriou com longos monólogos, aproveitando a euforia que Eldrid demonstrava, a fim de inteirá-lo do âmbito político e econômico dos vizinhos e do próprio reino, sabendo que o irmão não tinha lido absolutamente nada do relatório que havia deixado em sua escrivaninha no dia anterior.

Eldrid já revirava os olhos de tédio quando o som da carruagem se fez ouvir. Se direcionaram até a janela, pois os sons melodiosos de suas rodas sobre a estrada de pedra denunciavam algum tempo até sua chegada.

- Chega, por favor, entendi tudo, não precisa repetir tudo isso. Mudando o assunto aliás, onde está o Pai? Achei que não perderia o momento para me massacrar com suas duras conjecturas sobre responsabilidade, familia, reino...

- Acompanhando o comandante junto a Gytha até o posto destruído ao norte. Não sabemos o quão próximo está a guerra contra os bestiais, por isso reafirmo por ele a cautela no baile e que você tente... Não, que se obrigue a estreitar relações com os Lordes republicanos de Hegarin. Há uma crise política entre a família real, nobres e burgueses. Temos que nos aproveitar para formar boas conexões. A quantidade de notícias péssimas vem crescendo numa proporção alarmante; nem as profecias da Bruxa da Névoa parecem-me tão surreais nesse ponto.

-Não se deixe levar meu irmão, se você, o mais assíduo e racional da familia começar a levar em conta profecias irreais sobre o ressurgimento do Heigar's, sabiamente extintos a mais de um século, ou absurdos como calamidades vindas de outros mundos, quem diabos vai manter a serenidade nessa casa? Meu papel é trazer alegria por meio de minhas melodias, não serenidade! Longe de mim.

Osmund respira fundo, enquanto passa as mãos sobre a adaga de prata que sempre carrega a cintura. Se anima levemente pelas palavras do irmão, mesmo que as marcas da ansiedade já não saíssem tão rapidamente do rosto quanto antes.

-Só você para ser tão despreocupado. A carruagem chegou, te acompanho até ela.

Além da imensa porta de aço da entrada, um jardim florido intrincado dividia espaço com a estrada de pedras que serpenteava desde a entrada até a porta da mansão. Havia uma infinidade de flores dos mais variados tipos e tamanhos num verdadeiro caos de cores que reluziam feito o arco-íris, ainda que algumas tinham os brotos recém formados e suas folhas haviam mal nascido dos galhos nus. Osmund se deteve na porta da carruagem após seu irmão entrar.

-Não esqueça, pelos deuses- Leva a mão ao rosto do irmão de maneira afável -Mantenha o foco e traga-me boas notícias.

Eldred abre um sorriso malicioso pegando a mão de seu irmão e a beijando.

-Prometo-lhe por minha vida- Remexe os olhos, inflamados de astúcia -Além de que, a última coisa que desejo é ficar um único dia na academia militar, portanto, não há necessidade de receio, trarei ótimas notícias, mais do que você possa imaginar.

-Assim espero. Até mais sua raposa astuta e inescrupulosa!

-Até a vista, coruja tediosa.

Ambos caem na gargalhada afável. A porta é fechada pelo condutor pomposo da condução e a carruagem se perde devagar além dos limites dos campos verdes, onde a estrada cortava e serpenteava por quilômetros a fio.

Eldred permanece escorado no batente da porta. A sombra de um homem surge do salão, levando um braço em seus ombros. O peso do viçoso membro enverga suas costas.

-E então, o que acha? - Questiona o homem -

-Acho que posso ter nascido com alguma doença, por ser alguém tão melodramático, o completo oposto de vocês.

O homem dá um sorriso caloroso, balançando sua cabeleira ruiva, marcando as bochechas ásperas. Sua barba se estendia até o peito, enquanto seus olhos verdes opacos enaltece ainda mais a aura opressora que o corpo imenso e torneado transmitia.

-Infelizmente meu caçula herdou todo meu fervor por hidromel e mulheres. Voce ainda possui o intelecto de sua mae, mas aquele idiota é tao burro quanto uma pedra, pelos deuses, se nao amasse tanto sua mae, pensaria que ela tivesse saltado sobre os muros e se deitado com algum bardo sem vergonha. - Acaricia a longa barba com as maos inchadas de calos- Ainda que nao poderia reclamar se realmente tivesse feito.

Osmund se desvencilhou dos braços do pai num gingado esguio.

- Eldred é muitas coisas, mas quando se trata de politica o maldito tem um talento nato.

Um sorriso escapou dos lábios de Dagmar.

-Sem dúvida. Fico horrorizado com suas habilidades, ainda que me desagrada sua rebeldia. Creio que o tempo o fará tomar jeito, mas está com 25 e não vejo nem sinal.

-Não precisa se atentar a esse detalhe meu pai, tenho certeza de que oque ele precisa é só um choque forte o bastante, ouso dizer que um soco bem dado. Definitivamente o horror que sente por ser mandado para as fileiras do exército seja o melhor dos castigos apesar de não duvidar da primeira opção.

-Espero que esteja certo, precisamos de toda e qualquer conexão que pudermos desenvolver. O ar está pesado e minhas feridas ardem, não sinto tamanha apreensão a muitos invernos e não gosto nenhum pouco disso.

Os olhares dos dois homens temerosos se fundiram adiante, para as longas e opacas colinas verdes. Os pensamentos no entanto retiram-se em crises de estado, da crescente ameaça de guerra e o medo da aniquilação por forças que naquele momento pareciam tão longínquas que analisadas levianamente seriam esquecidas com desdém.