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Demon Cafe

Demon Cafe conta a história de Lívia, uma jovem que decide abrir um café que só funciona das seis da tarde às seis da manhã. O problema começa quando ela descobre que os seus clientes não são exatamente o que ela esperava.

Raul_Dullius · Urban
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15 Chs

O Visitante

O mês que se seguiu desde a visita de Beatriz marcou a chegada de mais um monte de pessoas ao Café. Embora muitos fossem quase um espelho da nossa primeira cliente no modo de vestir e falar, outros conseguiam ser quase tão estranhos quanto os demônios.

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Naquele dia, por exemplo, havia um cara que eu tinha certeza que estava vestido somente com folhas. Ele pediu um copo de leite e se sentou para conversar com Vilakin, uma criaturinha que lembrava uma jiboia com membros. Pareciam velhos amigos. No geral, eu só podia adivinhar o que as pessoas vinham negociar com os demônios. A maioria delas deixavam o Café sozinha logo após a negociação, embora algumas saíssem acompanhadas de alguma criatura, que retornava alguns dias depois. Eu tentei questionar os demônios sobre o tipo de trabalho que eles estavam realizando, mas havia algum tipo de contrato de confidencialidade envolvido. Enfim.

Do balcão eu conseguia ver pelo menos uma meia dúzia de pessoas, fora as dezenas de demônios que eu já considerava freguesia. Os monstros eram a principal fonte de renda do café: faziam pedidos das seis às seis, empinando xícaras sem parar. Naquele exato momento Tatiana passava por mim com uma bandeja cheia delas. Era o dia de folga de Tati, no qual ela era apenas ela mesma. Isso não fazia dela uma pessoa normal em nenhum aspecto, e os demônios adoravam ela por isso. Se eu não tivesse visto com meus próprios olhos, diria que seria impossível colocar tantos bottons em um colete só.

Embora sempre houvesse muito trabalho, nós estávamos pegando o jeito. Nos últimos dias eu já tinha até conseguido escrever algumas páginas do meu próximo roteiro. Já estava quase abrindo o notebook para trabalhar um pouco na minha peça, quando a porta do café se abriu com tanta força que chegou a bater na parede. Todas as cabeças se viraram para ver o sujeito encharcado que entrava, batendo os pés com força no chão. Uma tempestade caía desde umas sete da noite, e o homem (garoto?) não trazia nenhum guarda-chuva consigo. Suas botas estavam completamente ensopadas da caminhada através do jardim, que àquela altura já havia se transformado em um pântano. Poderia ter sido impressão minha, mas senti o ambiente ficar mais silencioso de repente. Ele veio direto na minha direção, abrindo a carteira e jogando gotas de chuva sobre o balcão ao tentar secar duas notas de cem.

— Saudações, madame. Eu estou aqui para negociar com Galantyr.

A ação toda me pegou de surpresa. Empurrei o dinheiro de volta na direção dele. Ele tinha dito Galantyr, mesmo?

— Opa, seja bem-vindo, senhor! Não, nós não cobramos por esse tipo de coisa, mas vamos ficar contentes se pedir alguma coisa do menu.

Fiquei um pouco constrangida ao chamá-lo de senhor. Embora o cabelo preto e pesado da chuva lhe cobrisse o rosto quase como uma máscara, não achava que ele pudesse ter muito mais do que 20 anos. Por outro lado, o sorriso que ele me deu ao pegar o cardápio parecia ser de uma pessoa muito mais velha. Passava um tipo cansado de gentileza.

— Perfeito, pra mim pode ser… Um frapê de baunilha.

Pude ouvir o suspiro de Tati do outro lado do Café. Pelo menos eu não precisaria passar o pedido pra ela. O garoto ficou me olhando por mais alguns segundos e, quando teve certeza de que eu não tinha mais nada a dizer, se virou em direção ao demônio no meio do salão. Então era mesmo Galantyr!

Fiquei observando com um misto de curiosidade a apreensão. Todos os humanos que haviam visitado o café até agora haviam ignorado Galantyr. E diferente dos outros demônios, que não calavam a boca um segundo, o gigante permanecia em silêncio. O garoto se aproximou dele sem cerimônia, levando a boca até o seu ouvido. Pude ver Galantyr assentindo de leve com a cabeça, mas não tive tempo de me preparar para a voz que chacoalhou o Café Goet.

— O QUE VOCÊ ME OFERECE COMO PAGAMENTO?

O garoto mexeu em um bolso interno da jaqueta, tirando lá de dentro o que parecia ser um pequeno jarro de conserva contendo um brilho que agredia os olhos. Galantyr olhou para o vidro, e depois virou a cabeça na minha direção.

— O DONO DA CASA AUTORIZA A NEGOCIAÇÃO?

— Ah… Ok, eu acho.

Eu não sou uma pessoa que costuma dizer não logo de cara para novas experiências, mas não demorou muito para eu passar a não gostar do que estava rolando. Assim que eu terminei de falar, o garoto abriu a jarra e colocou a mão lá dentro, trazendo a luz para fora. Na palma de sua mão, a luz foi diminuindo aos poucos, até que eu pude ver o que ele segurava entre os dedos: parecia uma mulherzinha minúscula, não muito maior do que uma tampinha de garrafa, com asinhas de mosca. Eu já havia me acostumado com demônios, mas não podia acreditar no que estava vendo.

A pequena criatura não parecia muito à vontade. Suas asas chacoalharam, e as mãozinhas se chocavam contra o punho que a segurava. Eu estava tentando ter uma ideia melhor do que estava acontecendo e do motivo de ela estar tão agitada, quando eu vi o punhal na outra mão do garoto.

Tudo aconteceu muito rápido depois disso. Não sei dizer como eu passei por cima do balcão, mas eu já segurava a mão com o punhal no momento em que ele tentou força-lo contra a fada.

— Não, não, não. Eu não autorizo isso!

O rosto do garoto estava bem à minha frente agora, e eu pude ver quando a máscara começou a se despedaçar. Aquele sorriso gentil e cansado se transformou em uma fileira de dentes visíveis através de lábios retraídos, e os olhos sob a sobrancelha franzida brilhavam de uma forma que espalhou um frio pelo meu corpo.

— O que você pensa que está fazendo? — ele disse, surpreso e aborrecido.

Minhas mãos ainda se apertavam com força ao redor do pulso que segurava o punhal. Ele deu um puxão forte que quase me fez perder o equilíbrio, soltando sua mão no processo.

— Eu não posso deixar você fazer isso aqui no meu Café!

Avancei sobre ele, buscando tirar a arma de sua mão, sem pensar na hora que ele poderia tentar usá-la contra mim. Ele foi mais rápido. Antes que eu pudesse fazer alguma coisa, o punhal já havia desaparecido para dentro do sobretudo. Ele colocou a fada de volta na jarra, guardou-a no casaco e levantou as mãos.

— Tudo bem, eu já entendi. — seus olhos estavam cravados em mim, um sorriso furioso no seu rosto. — Percebi que você era uma idiota desde o momento em que entrei aqui, mas não pensei que fosse pra tanto.

Eu sempre digo pra mim mesma que não devemos nos magoar com palavras de desconhecidos, mas ainda assim me odiei por não ter percebido a falsidade dele antes. O garoto parou ao lado de Galantyr e fez um gesto com a mão, apontando para o resto do salão.

— Você acha que todos esses que estão aqui já não fizeram coisa muito pior? — Ele olhou novamente nos meus olhos antes de prosseguir: — Você é tão burra assim, ou só não quer admitir? Tudo bem, desde que não seja na sua frente, é isso?!

Eu dei um passo para trás quando ele gritou. Tatiana assistia tudo a alguns metros de distância, e eu não podia culpá-la. Tinha certeza de que ela também queria fazer algo a respeito, mas nem eu nem ela sabíamos como lidar com a situação.

— Ô Lívia, esse cara tá te incomodando?

Olhei para a direção de onde vinha a voz e vi Pólux. Ele havia se levantado de sua mesa e caminhava até mim, encarando o garoto que fazia a cena. Seu bico estava levemente aberto, e uma língua de cobra sibilava pela abertura. O garoto levantou as mãos de novo e deu alguns passos para trás.

— E aí, Pólux! Então é assim que você cumprimenta um velho amigo? — os olhos do garoto ainda queimavam de raiva, mas a expressão ferida no seu rosto parecia genuína. — Tá tudo bem. Eu já tava de saída, mesmo.

Ele deu um giro que levantou a parte de trás do sobretudo, atravessou o salão em três passos largos e voltou para a tempestade que o aguardava do lado de fora. Assim que a porta se fechou, vi que de dentro do sobretudo dele havia caído o que parecia ser um pedacinho de papel. Me aproximei para juntá-lo do chão, mas fui impedida por Pólux, que se jogou na minha frente.

— Não toca nisso!

Ele se abaixou e abriu o papelzinho, que estava dobrado ao meio, fechando-o quase na mesma hora. Imediatamente, uma pequena chama se levantou de seus dedos pontudos, incendiando o papel.

— Merda, merda, merda…

— Que houve, Pólux?

— Dona, ele não derrubou isso aí por acidente. É um... —

E foi aí que eu ouvi falar sobre um Sigilo do Caçador pela primeira vez. Pólux me explicou que, naquela situação, funcionava quase da mesma forma que os contratos que eram firmados no Café. O Sigilo era um mecanismo para "cobrar" o contrato em algum momento indeterminado.

— Só que nesse caso, a gente se ferrou bonito, porque é um contrato de caça. Pelo menos a gente deve ter alguns minutos antes que ele consiga subir até aqui.

— Como assim, subir? — eu disse, logo antes de perceber o som de alguma coisa explodindo no banheiro.

—É — disse Pólux, voltando para sua mesa com uma xícara de café que ele pegou de cima da bandeja que Tatiana segurava. — Agora ferrou geral. Mas foi um bom Café, tenho que dizer.

— Como assim, foi?! — Agora eu estava gritando, porque o som que vinha do banheiro parecia uma cachoeira. — Você não pode fazer nada a respeito? Nenhum de vocês?!

Eu olhei para os demônios presentes na sala, mas onde antes havia um bando brincalhão e falador, agora só restava um monte de criaturinhas olhando para os lados, fingindo que eu não estava falando com elas.

— Nenhum de nós pode, Lili. Bem, — ele apontou — talvez aquele cara ali.

Eu caminhei na direção de Galantyr. Olhei para ele com um olhar firme, tão firme quanto possível naquela situação.

— Então, vai continuar só ignorando?

Nada.

— Eu quero que você faça algo a respeito!

— SEJA MAIS ESPECÍFICA.

O vozeirão do demônio me pegou de surpresa. Agora havia algum outro som no banheiro, também. Lembrava o som de uma escavadeira largando terra.

— Eu quero que você me proteja do Caçador!

Um urro veio de dentro do banheiro, tão alto quanto a voz de Galantyr, mesmo através da porta.

— O QUE VOCÊ ME OFERECE COMO PAGAMENTO?

Eu não sabia o que responder. Ouvi o estrondo de algo enorme se chocando contra o chão, e soube que a coisa estava vindo.

DUM.

— Eu não… Espera, o quê você quer?! — Eu perguntei, com medo do que viria a seguir.

DUM.

— FAZ TEMPO QUE NINGUÉM ME PERGUNTA ISSO...— O demônio colocou a mão na cabeça. — QUE TAL... CHOCOLATE?

DUM. DUM.

— Você quer um chocolate?

DUM. DUM. DUM.

— SUA CAPACIDADE DE SENTIR O GOSTO DE CHOCOLATE PRO RESTO DA SUA EXISTÊNCIA.

Acho que nunca na minha vida eu tomei uma decisão tão rápido, o que foi bom pra mim. Porque no segundo em que eu gritei — Tá feito! — a porta do banheiro explodiu, e o Caçador saltou sobre mim.

De certo modo, ele lembrava Galantyr no tamanho e nos chifres. Fora isso, era totalmente diferente. No que Galantyr era encorpado, o Caçador era delgado e esguio. Seu tronco não era mais do que pele e osso. Na verdade, seus longos chifres de gazela terminavam em um rosto que realmente parecia feito de osso. Os braços compridos que se estendiam na minha direção não terminavam em punhos grandes e dedos grossos, mas em alguma espécie de lâmina curva. As lâminas estavam apontadas bem pro meu rosto, e vinham até mim numa velocidade surpreendente. Teria acabado comigo, se o punho de Galantyr não tivesse sido mais rápido. O gigante carmesim acertou um soco em cheio no peito do Caçador, mandando-o de volta para onde ele veio… literalmente.

A criatura aterrissou, destruindo o que havia restado do banheiro. Uma sensação de alívio momentâneo tomou conta de nós dois quando o Caçador não levantou.

— NÓS TEMOS QUE SAIR DAQUI. ELE NÃO VAI FICAR NO CHÃO.

Eu não sei se ele percebeu a confusão nos meus olhos enquanto eu pensava em como iríamos sair dali, eu e um demônio que mal passava pela porta, porque foi nesse momento que Galantyr começou a se transformar.