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Capítulo 2

"Lírio Vermelho"

~ Shaya ~

Shaya olhou ao redor. Seus pés estavam cobertos de uma lama espessa e cavaleiros de armaduras emplumadas e espalhafatosas lutavam entre si. Em meio ao sangue derramado e aos soldados caídos, um dos guerreiros atirou uma flecha em sua direção. A flecha, que cortou o ar em linha reta com uma precisão indescritível, a atingiu no centro da sua testa.

Ainda em choque percebeu que a lama e o sangue do campo de batalha se transformaram em um campo florido. Shaya nunca havia visto aquelas flores antes, suas cores vibrantes e caules retorcidos. Algumas delas até voavam junto ao vento fazendo barulhos de assobios abafados. Ela ficou ali por vários e longos minutos, sob um céu azul quase sem nuvens, banhada por um sol fresco e uma brisa quente de verão vinda do mar calmo. Durante todo esse tempo nada aconteceu. Nem sequer um ser vivo emergiu do horizonte verdejante daquela campina.

O campo ensolarado se retorceu e árvores emergiram, brotando e rasgando o chão e fazendo as flores sumirem, dando lugar a arbustos lotados de espinhos com vários centímetros de comprimento e de plantas venenosas. Ela olhou ao redor e esperou. Seus sonhos geralmente eram uma mistura de cenários diversos, a maioria, como o campo florido era vazio de qualquer ação e lotada de uma espera ansiosa por qualquer coisa, qualquer mudança ou sinal. Era isso que todos queriam.

Em seus sonhos ela vagava pelas memórias do passado, e, em alguns sonhos raros, ela encontra uma linda moça de cabelos escuros e uma tatuagem de estrela no rosto. Era ela quem Shaya esperava, com suas palavras e conselhos sempre certeiros. Seus encontros eram sempre em lugares improváveis, perdidos no tempo, ruínas de algum reino antigo, as areias do deserto, altas montanhas. A última visita da encantadora moça a qual apelidou de "Estrela Azul", lhe foi dada uma mensagem a Baltazar, que abrisse os portões em um dia específico em um horário específico e acolhesse um novo discípulo. Foi na noite que Arty chegou. Além de uma frase que ela não sabia o significado mas que a fez pensar. "Alimente o sangue e o sangue jorrará.", ela pensou nesse assunto alguns dias, mas quando Arty apareceu estranhamente a frase foi apagada da sua mente.

As árvores terminaram de se retorcer, fechando a pouca luz que ainda chegava em Shaya. A úmida floresta se fechou ainda mais, dando lugar a um escuro e quente caminho rochoso. "Uma caverna", Shaya pensou.

A luz trêmula das tochas iluminavam pouco o caminho tortuoso. Quando passava as mãos da parede sentia a rocha arenosa fervendo, como se estivesse exposta muito tempo ao sol.

Uma criança estava na sua frente. Seus cachos negros e olhos verdes vidrados assustaram Shaya.

- Quem deixou você entrar? - disse o garoto.

- Isso é só um sonho. Ninguém precisa me deixar entrar.

- Essa seção é restrita apenas à formiga e aos seus filhos.

Shaya reparou na roupa da criança. Os babados de tecido branco fino e botões de ouro, um brasão cinza e dourado que ela não reconhecia a chamou atenção.

- Esse brasão é de alguma das casas de Borea? Acho que já a vi em algum livro.

- Esse é o brasão do governante do formigueiro. Como um dos mercenários do clã não sabe disso?

- Mercenária…? - perguntou Shaya, achando que havia escutado errado. - Eu sou uma princesa, seu pirralho. - Ela estava furiosa, mas essas palavras a fizeram lembrar do seu tio e então mudou a sua feição. - Você é muito pouco delicado para um sonho meu, garotinho.

- De novo com essa de sonho, moça? - o garoto a olhou de cima a baixo com um nariz empinado e olhar arrogante que só alguém muito rico ou muito soberbo teria. - Você se veste muito bem e é muito bonita.

O garoto se aproximou mais e só então Shaya percebeu que se tratava de uma criança de no máximo uns 5 anos. Ele a olhou e ela foi capaz de perceber os olhos cheios de água e os lábios trêmulos e então o garoto segurou sua mão.

- Hoje é meu aniversário.

Shaya acordou. Sua mãe e algumas servas estavam em pé no quarto frente a ela. Elas a vestiram e a maquiaram e então sua mãe as mandou embora

Kya tentou esconder a falha do cabelo durante eventos públicos com penteados, coisas que ela particularmente odiava.

Agora, mais uma vez, elas estão se arrumando para mais um desses eventos chatos, dessa vez para a partida de Kya e o rei em uma missão diplomático ao Império Giza, ela não sabia muito bem os detalhes dessa missão mas tem algo haver com pedir ajuda para o "problema vermelho", não que ela soubesse o que é esse problema.

Sua mãe tentava fazer novamente algum penteado para cobrir o estrago que ela tinha feito. Kya já sabia que ela pegava sua espada para treinar escondida, então ela nem chegou a perguntar onde sua filha havia conseguido o novo corte de cabelo exótico. Ela está vestida com um elegante quimono, com padrões delicados e cores suaves, enfeitado com uma estampa de lírios das mais variadas cores, com uma faixa vermelha na cintura e um laço feito da frente.

Shaya, com seus cabelos longos e macios da cor do mar da manhã, está pacientemente sentada em um banquinho baixo. Ela está vestida com um quimono combinando com o da sua mãe.

Com movimentos graciosos, Kya começa a desembaraçar com cuidado o cabelo da filha. Ela utiliza uma presilha de cabelo decorada, feita de jade, para prender uma seção do cabelo da filha no topo da cabeça. A mãe divide o cabelo em três partes e começa e cria uma trança elegante. Ela vai adicionando aos poucos delicados ornamentos trazidos de Surin, primeiro, ela escolhe pequenas flores de tecido, que combinam com as cores do quimono e as posicionam em alguns lugares específicos do cabelo. Além das flores, sua mãe também adiciona pequenos prendedores de cabelo de metal, que são decorados com detalhes intrincados.

Kya parou por um momento

-Essas decorações foram praticamente as únicas coisas que eu trouxe comigo de Surin. - comentou brevemente

-Por que logo essas decorações bregas? - Shaya estava incomodada com o peso desnecessário em sua cabeça

-Bem, elas estavam no meu corpo quando eu precisei fugir de última hora. Elas e a minha espada, são tudo o que eu tenho do meu país…

A espada da sua mãe era um espetáculo que só o mais brilhante dos ferreiros poderia ter elaborado, uma herança de gerações da família, uma lâmina que brilhava suavemente na luz. Em sua base, há uma guarda ornamentada, esculpida em formato de pétalas de flores em detalhes requintados, vários lírios estavam gravados com precisão no comprimento da lâmina de aço, com uma frase em Surin na parte afiada, "Lírio Vermelho".

Era esse o título da sua mãe e de tantos outros membros da família antes dela. As cores de Surin. O azul do mar e o Cinza das montanhas, os nomes dos guerreiros das cores eram dados a brilhantes homens e mulheres que se destacaram na arte da luta, esses, em especial, eram dados aos guerreiros que se destacavam independente da origem. Ao contrário, o título de "O Lírio vermelho" só era concedido aos membros da sua família, os mais aptos, claro. Era assim também com o Preto da discrição. Só membros da família real tinham direito de ocupar essa cor. Havia outras cores que faziam parte do grupo, todas extremamente leais ao imperador e a nação de Surin no geral. "Por que sua mãe teria fugido?", afinal ela carregava esse título e até portava a espada ancestral da sua família. Talvez ela nunca respondesse essa dúvida, falar do passado era doloroso para sua mãe.

Mas ela tomou coragem.

-A senhora nunca me contou o porquê saiu de Surin, mamãe. Quando a senhora vai me contar? - Ela tinha que saber. Precisava.

-Que tal quando eu voltar?

-Sério!? - Gritou Shaya empolgada

-Sim, mas só se o Baltazar dizer que você se comportou bastante.

Shaya não conseguiu conter sua animação.

Longos discursos foram proferidos para os camponeses e senhores de Babylon, na entrada do túnel que perfura a mais alta das montanhas do vale indo diretamente de encontro com o Deserto de Dersil. Várias carruagens puxadas por cavalos-gigantes. A enorme comitiva para o Império contava com a sua mãe, seu pai, criados, cavalheiros e damas de companhia, além de uma monumental comitiva de mercenários para assegurar uma viagem segura.

O vento era morno e ela suava sobre as várias camadas de tecidos. Naquele ponto o sol do deserto parecia escorrer entre a encosta da cordilheira e se derramar como óleo fervendo sobre suas cabeças. A despedida foi agridoce. Queria muito pedir à sua mãe que ficasse ou pedir ao seu pai que levasse Caim a qualquer custo, mas apenas fez suas reverências e as despedidas costumeiras da herdeira.

Mesmo que toda a parte da política tenha ficado a cargo de Baltazar, seu tio, mesmo sem o verdadeiro poder de um regente, se mostrava um tirano com as coisas mais banais possíveis.

"Arty não pode se sentar à mesa com a família real"

Quando seus "requerimentos" não eram para tornar a vida de Arty um inferno ele se queixava de Baltazar, geralmente usando de comentários preconceituosos sobre suas origens. É verdade que as pessoas do deserto, mesmo as das cidades livres mais ricas ou até mesmo da capital vibrante do Império tinham uma imagem péssima fora do continente, mas aquilo era bobagem. Se seu tio fosse colocado lado a lado com Baltazar, mesmo com a diferença na sua pele, ambos sofreram igualmente pela sua origem. Shaya pensava como seu tio já deveria ter se acostumado a pele escura e os ornamentos de ouro perfurados por todo o rosto de Baltazar. "Um idiota", pensava todas as vezes que via o tio.

A primeira carta de sua mãe para ela chegou, ela veio junto com mais algumas cartas para Baltazar como resposta a algumas questões do reino, cartas para nobres e alguns ministros importantes do país, lembranças de algumas das cidades livres do caminho e algumas especiarias e doces também. Além de uma carta para Arty.

Shaya

Desculpe por não mandar essa carta mais cedo, filha. Infelizmente tivemos muitos empecilhos no caminho e tive que sacar minha espada umas duas ou três vezes. Não precisa se preocupar.

Estamos na cidade de Ourus agora.

Ela é linda! Você amaria o ar da cidade, ela é cercada por uma alta muralha de barro amarelo que protege seu interior dos ventos do deserto. Não é tão eficaz como as montanhas de Babylon é claro haha

Aqui é uma democracia, como a maioria das cidades livres desse lado do rio do meio-dia, o prefeito acolheu o senhor seu pai e toda a comitiva com uma tremenda festa.

Mandei junto a carta um novo adereço para o seu cabelo. De tecido dessa vez, prometo que vai ficar lindo e não vai pesar tanto como os de jade e de ouro. Eles usam muito aqui, os homens e as mulheres. Todos aqui ostentam volumosos cabelos enrolados, tingidos das mais variadas cores por musgos que só crescem nesta região. Coloquei alguns em uma caixa para você, mesmo que o dono da barraca tenha dito que não sobreviveria à viagem. Espero que goste.

Sinto saudades. Estou ansiosa para receber a sua carta me contando como estão as coisas.

Eu te amo.

Shaya fechou a carta e a guardou novamente no envelope, colocando delicadamente sob a cama, ao lado da caixa com os presentes da sua mãe.

Dentro da caixa, a fita da mesma cor do seu cabelo a esperava. Ela era grande e tinha a textura como a de um papel áspero. Shaya a estendeu usando as duas mãos, era um material frágil e precisava de muito cuidado para não rasgar. Ela começou a confeccionar um grande lanço com o tecido quase transparente. A cada volta e sobreposição sua cor azul ficava mais evidente e no seu cabelo era onde a fita realmente brilhava. Mesmo lutando por atenção contra os melhores ornamentos e broches finos que uma família aristocrata poderia comprar, e mesmo que sua tonalidade fosse apenas um pouco mais clara que a dos seus cabelos, o laço brilhava. Era lindo, tão lindo e tão simples que a fez tirar alguns dos pentes de ouro próximos para dar mais ênfase a ele.

Ela guardou os outros presentes e a carta dentro de uma caixa debaixo da sua cama. Aquele era seu pequeno baú do tesouro e lá era o esconderijo onde guardava seus bens mais preciosos, não ouro ou jóias, mas as coisas que a faziam feliz. Cartas, um laço frágil, uma pequena escultura de porcelana, um musgo apodrecido pelo sol do deserto e outras quinquilharias que gostava de manter como recordações.

Ela recebeu mais cartas sobre mais algumas cidades livres e postos avançados que visitaram antes de entrar no território oficial do Império. A última carta que recebeu falava sobre algumas ruínas que eles acamparam uma vez, as ruínas da cidade de Iram. Sua mãe descrevia as paisagens com um simbolismo inacreditável, usava simbologias e metáforas e com certeza não poupou palavras para dizer como as únicas estruturas que restavam na cidade em ruínas são as estátuas dos Deuses.

Shaya não recebeu mais cartas desde Iram, nem mais ninguém do castelo ou da cidade das pessoas da caravana. Desde então se passaram quase 5 meses que a comitiva partiu, Shaya teve seu aniversário de doze anos comemorado com um enorme festival em todo vale, danças e brincadeiras alegres com uma enorme competição de esgrima. Arty completou os seus treze anos dois meses depois do dela, comemorado apenas por ele e Baltazar na silenciosa torre vermelha. Mesmo ainda distantes, Shaya o presenteou com uma linda pulseira com o brasão de Babylon, ela queria dizer pessoalmente que ele era da família mas não conseguiu, talvez aquela pulseira entregasse se essa mensagem melhor do que ela conseguiria com palavras ensaiadas. Arty usava a pulseira em todas as ocasiões possíveis, em treinos e nas sessões de estudo na torre vermelha, quando caminhava pelos corredores. Ele sempre a usava com orgulho.

Ele estava parado em frente a mesma estátua que prendeu sua atenção da primeira vez que entrou no palácio. Quieto e a observando com um olhar diferente da primeira vez, mais calmo.

Ela se aproximou, arrastando o mesmo quimono que usava no dia da partida da sua mãe, com flores de várias cores e um laço vermelho.

- Arty - ela pousou sua mão sobre o ombro dele.

- A escrita na estátua. Eu entendo agora, o Surin agora não é tão difícil para mim quanto para qualquer nativo. - ele sorriu para ela, pela primeira vez em muito tempo. - até melhor que você.

- Já que você sabe tanto então o que tem escrito aí?

- "Confie nas escrituras" - Arty vestia uma túnica escura com detalhes em listras na cor de bronze que reluzia a luz das velas de orações. - A história da deusa do tempo me intriga muito, sabia? Ela nunca pisou os pés no vale de Babylon e mesmo assim é a deusa dessas terras. Ela tinha uma ordem de seguidores também, os profetas, como eram conhecidos, mais odiados do que amados na realidade. Desapareceram antes dos deuses, bem no começo do declínio, eles tentavam prever o futuro usando a matemática e a lógica e foram perseguidos em todos os continentes quando os humanos começaram a se rebelar contra as divindades. Os sobreviventes fugiram até encontrarem esse vale perdido nas areias do deserto e então fundarem Babylon.

- Perseguidos? - "Como poderia eu não conhecer essa história?" pensou. - Mas várias ordens e templos sobreviveram ao declínio, por que eles em especial foram perseguidos? Suas previsões estavam erradas? Foi por isso?

- Não - Arty respondeu. - Não eram tão precisas como as suas, afinal eles não tinham o poder do despertar, mas conseguiram prever alguns desastres e isso já foi suficiente para que os heróis da época os considerassem uma ameaça à revolução.

Arty estava diferente. Carregava um ar mais elevado, de mais sabedoria e parecia muito mais maduro do que Shaya, mesmo assim ele parecia mais frio e distante do que nunca.

Shaya precisou reunir suas forças para tocar na ferida.

- Acho que temos um assunto inacabado.

Do fundo do corredor Baltazar emergiu das sombras, sua corrente, agora de prata, fazia pequenos tinidos a cada passo.

- Shaya, seu pai retornou.