1 CHAPTER 1

Na noite calma, as estrelas cintilavam sob o véu escuro do céu. Lúcia as apreciava da janela do seu quarto no segundo andar da casa. A brisa que entrava no ambiente agradava. Pegara seu diário que o chamava de Rapunzel, que considerava tão especial quanto seu caderno escolar.

Querida Rapunzel...

Hoje foi mais um dia de duros ensaios na Cia. O diretor Bellis caprichou na mandação. Sua bipolaridade me mata. Confesso que também o admiro. Mas sou fã mesmo da filha dele, Cibelli. Linda, técnica e talentosa. Também vinda de um casal de "super bailarinos"! Uma Graham renascida. Ao contrário do irmão, egocêntrico. Mal olha a gente no rosto quando dança em dupla.

Chega de falar dos outros.

Eu um dia chegarei lá! É meu sonho.

Afinal amo bailar, rodopiar e saltar. Me sinto livre como um cisne... Aaaah! Demais!

Hoje no café da manhã comi o delicioso bolo de milho feito pela minha mami. Tadinha, mesmo cansada preparou de madrugada. Não posso reclamar. A vida me presenteou com uma boa genitora.

Esta noite, eu, você e Vespa, dormiremos sozinhas. Mami vai ficar no plantão. Quero sonhar com o rosto do meu príncipe. Não há que temer, tem alarme na casa.

Bom na escola o mesmo de sempre. Eu, minha amigona Rafaela, o nosso escolta Jânio, que apesar de ser filho de policial é vítima dos bullyingmaniacos que ficam na saída da escola. Eu fico chateada que apesar de termos denunciado, tudo continua igual. Mas "filhinhos de papai" parecem sempre se sair bem, enquanto nós, bolsistas levamos tapa na cara. A Rafaela não deixa passar, abre o bocão, xinga... Eu acompanho sem usar o mesmo linguajar claro. Adoro meus amigos! Como é fora da escola nunca fomos para detenção, à gente se vinga como pode, mas tudo na moita rsrsrs... Isso nos diverte.

Nosso papo tá muito bom Rapunzel, o sono chegou... Pôr meu iphone... Escutar TS dormindo é tudo de bom.

Beijos! Au revoir!

Concluiu. Virou a folha e desenhou um rosto masculino que imaginou. Enquanto escutava as canções de uma das suas cantoras prediletas finalizou a cabeça. Deixou a figura sem pescoço e corpo. Fechou o diário. Trancou com a chavinha e guardou na gaveta da penteadeira. O diário de capa grossa, aveludada azul marinho continha 300 folhas, tamanho 16,5x23, 5 cm, com cem já escritas e ilustradas. Seu pai Virgílio a presenteou aos doze anos, após ter se separado de sua mãe. Uma forma de não deixá-la sentir tanto sua falta, antes de partir para os Estados Unidos em busca de emprego, a fim de realizar o tão desejado sonho americano, assim como tantos outros companheiros brasileiros.

Aconchegou-se na cama. Arrumou o travesseiro e dormiu.

Às seis da manhã o despertador tocou. Tomou banho e se vestiu ao seu estilo. Meia calça preta, vestido de malha roxo claro, até o joelho e bem colado. Combinado com a boina da mesma cor. Botina, cinto caído no quadril e colete pretos. Lenço lilás escuro, brilho labial e por último o delineador. Fez uma pose em frente ao espelho, sorrindo e lançando um beijo.

Ao caminhar até o ponto de ônibus que fica na rua onde mora, observou uma mudança em frente à casa dos Heclis, que há cinco anos haviam se mudado e deixado a casa para ser locada. Parece que agora estariam voltando. Com fone no ouvido Lúcia se apoiara na barra da parada Amauri Lange. Passados alguns minutos, acenou e subiu no veículo. Durante o trajeto lia um livreto de autoajuda, não que ela precisasse, mas pelo costume de ler, sua mãe Clarice fascinada por bibliotecas lhe despertou o mesmo habito.

O ônibus amarelo estacionou no ponto final de sempre, situado na Av. Nestor de Castro. Desceu, passou pelo Largo da Ordem, dobrou uma das esquinas que dava na Treze de Maio, rua do colégio. O Couto Martins de três andares, contendo dez salas de aula no segundo e no terceiro. No primeiro ficava a secretaria, diretoria e recepção. O portão eletrônico de entrada e saída era de ferro gradeado de pintura branca, assim como as laterais das janelas e portas. O resto em alvenaria da cor azul claro. No térreo, duas quadras de esporte, um salão de eventos, um pátio com bancos de madeira e uma lanchonete.

O colégio seguia padrão rígido e tradicionalmente hierárquico. Administrado somente por familiares. Só não exigia uniforme. Os alunos podiam freqüentá-lo à paisana. Os Martins veneravam as artes em um todo, pintores, bailarinos e etc. Tudo que tinha haver com o mundo artístico, por essa razão era o único colégio que fornecia bolsas para alunos qualificados estudarem no exterior. Lúcia subira os degraus até o segundo andar, virou à direita e entrou na sala. Cumprimentou seus dois melhores amigos Rafaela e Jânio.

O professor de Inglês adentrou na classe. Ordenara que todos se sentassem nas carteiras, de imediato estes obedeceram.

Antes de escrever Lúcia estalou os dedos. Os alongou como todo dia faz, pois sabia assim como seus colegas que a ''sessão escriba'' começara e iria cessar somente quando o professor parasse de escrever ou ditar. Na maioria do tempo ele falara em inglês, no intuito de incentivar a pratica da língua entre os alunos. O professor John Scott é descendente de americanos e dinamarquês. Sua religião permitiu como missionário viajar por muitos países, aprender várias línguas e ter possibilidade de escolher se estabelecer em qualquer lugar. Foi isso que fez quando conheceu a capital do Paraná, após sua formação nos Estados Unidos, voltou e decidiu ficar. Alto, magro e imponente, sua seriedade e seu modo extrovertido de falar conquistaram o respeito e admiração dos alunos.

Hora do intervalo...

Os estudantes se aglomeravam no pátio. Lúcia descia a escada com seus amigos, quando um rapaz foi de encontro a eles. Apressado esbarrou nos três. Lúcia desequilibrou. Mas antes que pudesse cair, o rapaz habilidosamente a segurou pelo braço. Olharam-se fixamente. Algo despertou uma sensação em Lúcia de que já o tinha visto antes. Talvez os contornos dos olhos. Sim o contorno provavelmente. Porém não tinha certeza. Primeiramente ela o viu como um garoto grosseiro, sem educação, no entanto sua mente lhe permitiu vê-lo de acordo com sua imaginação, um belo bailarino com trajes principescos. De alguma forma sem explicação, algum sentimento dela o escolheu nessa ocasião inesperado para que recriasse um personagem que só seu íntimo saberia. Então ele fez um gesto com a mão, levando até a testa, tocando-a com dois dedos, como um cumprimento, sorriu de canto e piscou o olho se apresentando.

- Meu nome é Marcos. Desculpa ai pelo mau jeito – disse.

Ela não disse nada, só consentiu com a cabeça, porém Jânio e Rafaela reclamaram da atitude do rapaz.

- Esse guri é um idiota. Você viu o gesto que ele fez? - Rafaela retrucou.

- Babaca sem noção - replicou Jânio.

- Ele é só um estúpido - balbuciou Lúcia.

Os três se sentaram no banco para lanchar. Lúcia saboreava seu sanduíche vegano, o que ao paladar dos seus dois amigos não pareciam ter gosto algum.

- Você ainda tá nessa dieta? – disse Rafaela. – Ai, Como você consegue amiga? Pensei que era o fim - Repreendeu Rafaela.

- Já faz dois anos Rafa, desde que subi um degrau na companhia. Essa dieta é única que vai deixar meu corpinho na forma ideal, assim como o da Cibelli - Lúcia justificou.

- Hum... A tal Cibelli – Jânio se meteu. - ainda não vi dançando, então não posso concordar com você que ela seja a melhor - disse em reprovação.

- E... – resmungou Rafaela enquanto abocanhava seu hot dog. - quando você vai sair da sombra dessa guria e será a estrela da vez? – Limpou com os dedos o catchup escorrido. - Já se inscreveu no concurso cultural do colégio? - Perguntou Rafaela dando mais uma mordida no seu hot dog.

- Isso! – lembrou-se Lúcia. - Eu preciso ver se já começou. E você Jânio? – Se voltou para o amigo. - Como anda aquela... Você sabe.

- Ah, a separação dos meus pais? – ele mordeu o hot dog. - Ufa... Minha mãe finalmente encerrou a história bagunçada dela com meu pai - expressou Jânio em tom aliviado.

- E você, como está encarando? - Continuou Lúcia.

- Olha... Por um lado estou sobrevivendo e por outro estou aliviado pela minha mãe - revelou Jânio sugando pelo canudo seu refrigerante.

- Pelo menos vai se livrar das tapas na cara - interferiu Rafaela ainda mastigando.

- Rafa! - Disseram Jânio e Lúcia ao mesmo tempo. Condenando Rafaela.

Após o colégio, Lúcia e seus amigos visitaram a biblioteca pública. Trocaram livros já lidos por outros. Passearam pelo centro histórico, considerado um dos maiores pólos turísticos de Curitiba. Tiraram fotos com turistas e almoçaram no Shopping. Depois dançaram no clube juvenil Fliperama e se despediram de Rafaela no salão de beleza dos seus pais Ellen e Camargo. Jânio fora com sua mãe Elize, que sempre o pegava de carro na Praça Tiradentes. Faziam esse roteiro quase todo dia depois das aulas. Nos finais de semana raramente se encontravam. Rafaela viajava com seus pais para casa de praia de seus avós maternos. Jânio ficava na casa dos primos e Lúcia se apresentava com a Cia de dança nos teatros em cidades vizinhas.

Duas e quinze da tarde, Lúcia fazia aquecimento corporal junto ao grupo de dança, antes do ensaio começar. Cibelli substituía o pai. O que para Lúcia significava pegar leve, no entanto não foi bem assim. Depois de ver seu ídolo bater no rosto de uma companheira de dança e ouvir os xingamentos da própria, ficara estarrecida.

''Ela está se mostrando pior que o pai'' - pensou.

As dezoito e trinta ao chegar em casa viu alguém entrar numa casa mal construída no terreno vizinho. Curiosa, seguiu a sombra. Escutou gemidos que pareciam ser de dor, mas não pode ver tal pessoa, devido que local não tinha iluminação.

- Oi, tem alguém ai? - Perguntou Lúcia que logo obteve uma resposta.

- Sim - respondeu uma voz engasgada.

- Precisa de ajuda?

- Muito...

- Espera, vou buscar uma lanterna. Volto logo!

- Por favor, estou muito machucado!

- Tudo bem. Já volto!

Ao voltar sondou com a luz da lanterna para enxergar a pessoa que pretendera ajudar. Quando pode ver o rapaz com rosto machucado escorrendo sangue da testa até a bochecha, acendeu algumas velas próximo onde estavam.

- Nossa você está bem mal. Venha, vou estancar o sangue... - Disse Lúcia pressionando com algodão úmido em agua oxigenada.

- Valeu gracinha.

- Se você flertar comigo vou te deixar pior do que está - Ameaçou Lúcia.

- Nossa! Prefiro não dizer nada.

- Ok. Minha mãe é enfermeira. Eu aprendi algumas coisas com ela.

- Bom. Muito bom... Arre! Isso dói! Os caras me pegaram de jeito.

- Os caras?

- Arre...

- Por um acaso você sofre bulliyng? - Perguntou Lúcia intrigada.

- Bem isso.

- Bem isso mesmo? Ou você disse só para despistar? O que aconteceu de verdade?

- Também – respondeu vagamente. - Eu prefiro contar outra melhor - disse o rapaz que não estava nem um pouco a fim de revelar o que realmente aconteceu.

- Pronto. Espero que você fique bem amanhã. É só não se meter mais em confusão - aconselhou Lúcia.

Lúcia levantou-se determinada a sair. O rapaz impediu-a apertando sua cintura. Ela tentou se desprender dos seus braços, mas foi em vão.

- Espera- apertou mais. - A gente nem se apresentou. Sou Marcos e você? - Lúcia já tinha escutado esse nome. Seria o mesmo rapaz que quase a derrubou das escadas na escola de manhã?

- Que ridículo – replicou. - me deixa ir - Lúcia tentara sair do enlace dele.

- Seu nome. Daí então eu te solto.

- Ah. É assim que você se apresenta para as garotas?

Ele apertara mais...

- Fala. Daí eu deixo você ir e nem precisa mais olhar na minha cara.

- Lúcia – disse sentindo a força do braço dele. - Agora me solta. Você é um bruto! – o empurrou.

- E, agora... O agradecimento – ele ousou enlaçá-la novamente.

Marcos a afrontou com um beijo. Clareou o rosto dela com a lanterna que de alguma maneira foi parar na sua mão. A pegada dele era forte. Lúcia tentara se mexer, mas não dava. Ele a observou bem.

- Hora, hora... O que vejo aqui hein? Você é a garota da escada... E tem os lábios mais fascinantes que já vi. Incomparável!

- Oh Deus! E você o grotesco garoto - expressou Lúcia em tom de repulsa.

- O mesmo que não te deixou cair.

- Me solta – exigiu. - eu preciso ir.

Marcos a soltou.

- Você mudou muito desde última vez que te vi - Falou como se já a conhecesse. Provavelmente o rosto dela era familiar. Ele a reconheceu.

- É – disse sentindo os lábios ainda molhados pelo toque da boca dele. - Desde daquela vez que você me jogou na lama. Naquela chuva horrível - Ela confirmou que também já o conhecia de anos passados.

- Então você ainda lembra?

- Olha. Vê se fica longe. Finja que eu não sou sua vizinha e que a gente não se conhece ok? - Disse Lúcia dando as costas saindo pela mesma porta que entrou.

- Aham. Ok!

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