1 "Lar, doce lar."

É uma tarde diferente de qualquer outra. Para começo de conversa, o conforto do lar é substituído pelo balançar do veículo e o sentimento de vertigem que apenas aumenta um pouco com cada curva. O veículo passa por cima de uma pequena pedra, gerando um solavanco de potência equivalente, e olhando pela janela, não há muito além de vários bosques e casas esparsas que surgem quase que periodicamente aos lados da estrada.

Uma placa. No meio daquela rodovia, uma placa de madeira indica o lugar onde eles agora se encontram, o indicativo de uma nova realidade que está para começar. "Seja bem-vindo à Elderlog" é o que diz naquele informativo. Pintados em letras brancas, os caracteres delimitam o início de um novo espaço geográfico do planeta.

O céu, sutilmente colorido em tons de âmbar, carrega para longe as memórias e emoções, lembranças que jamais pensariam em ser deixadas para trás em detrimento daquela nova realidade. Por que tudo no mundo tem de ser tão complexo? Qual o motivo das coisas acontecerem da maneira que ocorrem? Será toda a existência apenas um conjunto de sucessivas coincidências, aquilo que costuma chamar-se de "destino"?

Eles definitivamente não sabem disso, e sequer posicionam sua atenção nesse aspecto. Tudo o que sabem é que sua vidas passada estão sendo reduzida à cinzas por essa mudança, todas as suas histórias apagadas, assim como o que costumavam significar para esse mundo.

Tudo está sendo levado embora pelo céu alaranjado daquele fim de tarde.

"Espero que estejam ansiosos para conhecer a casa nova!"

Uma voz feminina chama a atenção. Firme, mas ao mesmo tempo extremamente dócil, a mulher que senta no banco da frente está atentamente observando a estrada. Seus cabelos crespos grandes e volumosos não permitem a visão da frente do veículo para quem se sente atrás de si. As mãos magras, de unhas pintadas em esmalte rosa de tom claro, resplandecem, quase cegando quem olhe para seus dedos.

Ela já está assim há algumas horas, segurando-se ao volante do carro familiar. Todos dentro do veículo possuem uma história para contar.

"Vou demorar para me acostumar com essa vida de interior... Por que tivemos que sair do Alabama para esse lugar frio e que é localizado literalmente no meio do nada, mãe?"

Uma segunda mulher, desta vez mais jovem, contesta indiretamente aquilo perguntado pela primeira. Ela não está ansiosa para o que está por vir, e ressente a outra pela escolha que foi tomada.

Um pequeno silêncio repousa sobre o espaço interno do meio de transporte por um par de segundos. A condutora então limpa sua garganta, em um sinal claro de que não gostou do questionamento, e logo trata de fornecer uma resposta.

"Você sabe muito bem quais foram os motivos, Hannah..."

Ela aumenta a força do agarro ao volante, fincando suas unhas na estrutura de borracha. Aquela, entretanto, não é a explicação que se busca escutar.

"Vocês vão gostar de Elderlog... Apenas deem uma chance para esse lugar, sim?"

"Vocês". Há outra pessoa no veículo além de elas duas, um terceiro indivíduo cuja presença ainda não foi noticiada até o momento.

"Como se isso fosse uma justificativa... Só porque nosso pai morreu, não significa que temos fugir desse jeito, pois essa é a sensação que tenho: a de que estamos fugindo de algo."

Suas palavras são ríspidas e diretas, o traço de alguém que não teme a possibilidade de ferir os sentimentos alheios. A voz grave denota o existir daquele rapaz, um quase-homem de dezessete anos de idade.

Ele olha pela janela. Seus olhos vazios como buracos-negros pensam em tudo o que está sendo perdido em decorrência de tudo isso. Ele nunca desejou deixar o seu local de nascimento, mas foi forçado a isso muitas vezes. Não que ele sequer se lembrasse de como é sentir-se satisfeito com a vida imperfeita e movimentada da cidade, e que poderia ser quente durante o verão.

Agora, tudo o que resta é o perpétuo frio de Elderlog, uma pequena cidade localizada em Montana. O lugar é pequeno e simples, sendo bem mais preenchido de florestas e bosques do que casas, ruas pouco movimentadas e uma ausência quase geral de entretenimento.

Os três estão nesse carro por um simples motivo. Há cinco anos, faleceu um homem chamado Emanuel Savoia, pai dos dois que sentam-se nos bancos de trás. Seus filhos chamam-se Hannah e Ryan. O falecimento do Sr. Savoia é um mistério, posto que foi apenas encontrado em um laboratório destroçado por inteiro, no campos da Universidade de Harvard.

Após a misteriosa morte de Emanuel, Joanne Savoia, sua esposa, decidiu que seria mais agradável mudarem-se para um lugar diferente. O problema é que se repetiu demais... Carolina do Norte, Detroit, Oklahoma... E agora, a pequena e pacata Elderlog. Tal decisão foi feita em total contragosto dos filhos, posto que nenhum deles aprovou isso.

As temporadas deles em cada cidade sempre foram muito pequenas, atendo-se apenas a alguns meses. Logo, ele não espera que essa estada seja diferente.

O fato é que o argumento de Ryan é capaz de impactar Joanne. A mulher mantém-se silenciosa por mais alguns momentos ao ouvir aquilo. Ela está tentando fugir do passado e o rapaz sabe disso.

"Logo estaremos chegando..."

Ela muda o foco do assunto com sucesso, e continuando pela estrada, demoram-se cerca de cinco minutos até atingirem um endereço. Joanne para o carro em frente àquela casa. Este é o novo lugar em que a família viverá.

Todos saem do veículo. O vento gélido corre por entre as pernas, e o som das aves a cantarem sua melodia é a única coisa alheia à calmaria que ali se consolida. O céu presenteia os olhos com o belo gradiente de cores, que estende-se desde o cinza das nuvens ao amarelo do sol poente no outro extremo.

No fim da rua, uma placa, com a inscrição "Poplar Street".

Calmo. Não há outro veículo por perto, e as outras casas são afastadas umas das outras. Uma rústica e fina arquitetura que se une para gerar a atmosfera, um lugar paradisíaco e incomum para o mundo em que vivem. Bosques de coníferas por todos os lados, e uma cerração suave, que carrega o odor da madeira dos troncos de pinheiro e abeto.

"Essa é a nossa nova casa, nossa nova vida. Podem esquecer de voltar ao Alabama. No que depender de mim, minha família jamais colocará um pé naquela terra novamente!"

Joanne impõe um ultimato. Eles não retornarão para sua terra de nascimento. Não há uma resposta para isso, apenas a vontade de fugir de seu doloroso passado. Evitando falar mais do que o necessário, a mulher logo trata de abrir o porta-malas, retirando duas malas grandes dali, subindo com velocidade os degraus de madeira, que contam em cinco, e que separam a casa do chão em que está construída, garantindo-lhe cerca de um metro de elevação.

A construção é bela e aparenta ser aconchegante, contudo. Pintada em um tom sutil de azul. Duas janelas logo no andar inferior feitas de vidro indicam a sensação de segurança vivida pelos moradores de Elderlog. O lugar é pacífico à ponto de permitir uma casa com um nível de segurança baixo como aquela.

Há uma varanda, assim como no andar superior. O aspecto da residência também aparenta ser bom, o que por si é uma pequena vantagem em relação ao restante, a tudo o que eles tiveram e terão de passar nesse novo ambiente.

Hannah, irmã de Ryan, uma mulher jovem com seus vinte e um anos, encontra-se visivelmente emburrada por aquela mudança de rotina. Agora, terá de executar o seu trabalho como enfermeira no único hospital que existe na pequena e fria cidade, o que significa uma jornada de trabalho mais exaustiva, que por sua vez, significa que ela não poderá flertar com os enfermeiros com tanta frequência.

Ela balança sua cabeça para ambos os lados, e vestindo uma expressão de desagrado, pega duas bolsas com roupas, uma em cada mão, levando-as para dentro da casa, assim, fazendo restar apenas o rapaz do lado de fora.

Em todos os seus quase dois séculos de vida, o jovem Ryan jamais se distanciou tanto do lugar onde nasceu. Seu desagrado pela situação é mais escondido, sublime, e repousa em sua expressão terminantemente séria. Aquele não é lugar adequado para ele, e o rapaz sabe disso. Ele não pertence nessa pequena cidade e sua calmaria.

Ele franze sua testa, observando conforme o céu torna-se gradualmente mais escuro e desprovido daquele degradê de cores. Não há o que fazer, infelizmente. Ele terá de se acostumar com aquele ambiente. Isso se prova bem mais fácil do que o contrário.

Ryan pega em sua mão as duas últimas malas restantes. Hora de conhecer o novo lugar em que viverá uma parte significativa de sua vida. Ele sobe os degraus. Eles rangem. O vento faz farfalharem as folhas do bosque nas proximidades. Explorar a mata promete ser o maior divertimento que esse lugar oferece, e com isso o rapaz sente que fará isso periodicamente.

A maçaneta de latão de formato oval da porta de entrada é fria. A porta não realiza o menor barulho enquanto é aberta, e logo, um corredor levemente amplo se faz presente à sua frente. Há um lustre com luzes elétricas amareladas que garante uma iluminação harmônica ao espaço, e à direita do corredor, está a escada que conduz ao andar de cima. Seguindo para a frente, duas portas. Um delas leva para um banheiro, enquanto a outra à cozinha. Entre as duas portas existe um cômodo, que corresponde à sala de estar da casa.

O lugar está completamente mobiliado. Não há mais o que fazer além de arrumar as roupas. O chão é liso, feito de madeira nobre envernizada, e as paredes são pintadas no mesmo gentil tom de azul que cobre o exterior. O teto é branco, comum e simples.

Ryan sobe as escadas. É um caminho de dezesseis degraus até o destino. No lado de cima, o espaço é divido em menos cômodos, o que causa a sensação de ser mais amplo. Do lado direto de quem sobe, está o caminho para a varanda da casa, uma grande porta de vidro que permite a visão do lado de fora. A altitude há de gerar uma bela vista da floresta e das outras casas próximas. Já do lado esquerdo, há um outro corredor, desta vez bem menor, que contém duas portas em cada lado. Cada uma dessas portas corresponde a um quarto, e de acordo com o que foi dito para ele previamente, seu quarto será o que está na esquerda.

A porta de seu quarto range um pouco. O corredor superior também possui um lustre, e embora esse esteja desligado, o lugar é bem iluminado pela luz que atravessa a porta de vidro da varanda. Ryan trata de acender o lustre ao acionar um disjuntor. Logo se tornará noite.

Ele entra por fim no seu cômodo. Toda a mobília já está lá. Joanne gastou uma boa quantidade de dinheiro apenas para deixar tudo perfeito daquele jeito.

O quarto dele possui uma grande janela de vidro na parede oposta à porta. É um cômodo amplo. A cama jaz na parede adjacente à direita da porta, enquanto a escrivaninha com seu notebook e lâmpada de mesa estão de frente para a fonte de iluminação natural. O roupeiro está na última parede restante, a esquerda, e no centro, um carpete vermelho quadrado, decorado com padrões de losango em dourado, ocos e que se sobrepõe paralelamente uns aos outros em sentido vertical.

É um ambiente bonito, e isso é inegável, contudo, nada irá substituir a experiência de vida que ele teve previamente, afinal, o que uma cidade tão pequena pode fornecer de interessante para alguém como ele, uma pessoa que conhece as diversões dos grandes centros urbanos?

Enquanto se pergunta isso, Ryan repousa as malas sobre sua cama, tratando de puxar o zíper da primeira delas.

"Isso vai ser uma chatice..." Ele fala consigo mesmo.

Ele rapidamente organiza suas coisas. O tempo passa devagar quando se está entediado. Sem nada para fazer, Ryan desce para o andar inferior novamente, visitando o cômodo da cozinha. Ele puxa a maçaneta, e adentrando o espaço, percebe que apenas sua mãe, Joanne, está ali.

Ela já preparava algo para o jantar. Ryan aproxima-se da geladeira com um copo de vidro na mão.

"O que achou da casa?" Joanne o questiona.

"Você quer que eu seja sincero ou que eu minta?"

Ryan olha para ela seriamente. Ele não está sequer um pouco satisfeito com aquela mudança de vida. Sua mãe, por sua vez, logo sofre de uma alteração de humor.

"Ryan, você sabe que essa é nossa única opção... Não pudemos continuar no Alabama e você sabe o motivo."

Ele repousa o copo vazio no escorredor. Seu conteúdo já fora consumido.

"Não. Eu não sei do que você está falando. Você nos puxou para cá contra nosso gosto e sabe bem disso. Não reclame se não nos adaptarmos aqui."

Apenas o silêncio surge como resposta. Joanne sabe que é verdade, de que está apenas fugindo do seu passado e arrastando seus filhos consigo, contudo, como a maioria das mães, aquela decisão é pensada em prol do bem maior, o bem de sua cria. Ela respira profundamente, tomando para si uma grande quantidade de ar, e ao fechar os olhos, diz.

"Amanhã você começa na sua nova escola. Vai fazer novos amigos por lá, isso eu garanto."

Joanne então toca as costas de seu filho.

"Eu sei que é difícil, mas é o melhor, meu filho... Esse lugar é o melhor para uma pessoa como você, Ryan..."

Ela abraça Ryan, que corresponde ao envolvê-la com seu braço direito. "Uma pessoa como ele". Aquela frase enigmática determina a situação daquela família.

Os Savoia certamente não são uma família tão normal quanto a imagem que tentam passar...

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