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PRIMAVERA SILENCIOSA

Dois anos depois, cordilheira Grande Khingan

— Ma-dei-ra…

 Depois do brado alto, um cedro enorme, grosso como as colunas do Partenon,

caiu com um baque, e Ye Wenjie sentiu a terra tremer.

 Ela pegou o machado e a serra e começou a cortar os galhos do tronco.

Sempre que fazia isso, tinha a sensação de estar limpando o cadáver de um

gigante. Às vezes, imaginava que o gigante era seu pai. As emoções daquela

noite terrível dois anos atrás, quando limpou o corpo do pai no necrotério,

voltavam à tona, e as rachaduras na casca do cedro pareciam se transformar nas

cicatrizes antigas e nos ferimentos novos que cobriam seu pai.

 Havia mais de cem mil pessoas — de seis divisões e quarenta e um

regimentos do Corpo de Produção e Construção da Mongólia Interior —

espalhadas pelas vastas florestas e pradarias. Quando saíram de suas cidades e

chegaram àquela região selvagem e desconhecida, muitos dos "jovens

instruídos" do Corpo — jovens universitários que já não tinham escolas para

frequentar — acalentavam um desejo romântico: assim que os tanques dos

imperialistas revisionistas soviéticos cruzassem a fronteira entre a Mongólia e a

China, eles se armariam e fariam do próprio corpo a primeira barreira da defesa

da República. De fato, essa expectativa era uma das considerações ideológicas

que motivaram a criação do Corpo de Produção e Construção.

 Mas a guerra pela qual eles ansiavam era como uma montanha ao final da

pradaria: perfeitamente visível, mas tão distante como uma miragem. Então eles

precisaram se contentar em abrir campos, pastorear animais e derrubar árvores.

 Em pouco tempo, os jovens homens e mulheres que gastaram a energia da

juventude em peregrinações aos locais sagrados da Revolução Chinesa

descobriram que, comparadas ao céu gigantesco e ao espaço aberto da Mongólia

 Interior, as maiores cidades da zona rural chinesa não passavam de currais de

ovelhas. Ali, no meio da imensidão fria e infindável de florestas e pradarias, a

motivação flamejante deles não significava nada. Mesmo que despejassem todo

o seu sangue, ele resfriaria mais rápido que um monte de esterco e não seria tão

útil. Porém as chamas eram seu destino: faziam parte da geração que devia ser

consumida pelo fogo. E assim, sob a fúria das motosserras, vastos oceanos de

floresta se transformaram em penhascos estéreis e colinas desmatadas. Sob o

ronco dos tratores e das colheitadeiras, amplos hectares de pradaria se

transformaram em campos de cultivo de grãos e depois em desertos.

 Ye Wenjie só conseguia classificar como loucura o desmatamento que estava

presenciando. O cedro alto, o pinheiro-silvestre centenário, a bétula esbelta e

reta, o choupo coreano que atravessava as nuvens, o abeto aromático, e também

vidoeiros-pretos, carvalhos, olmos-montanheses, salgueiros — tudo o que

vissem era derrubado. A companhia de Ye brandia centenas de motosserras como

uma infestação de lagartas de aço, deixando apenas tocos para trás.

 O cedro derrubado, agora sem galhos, estava pronto para ser levado pelo

trator. Ye Wenjie acariciou com delicadeza o miolo recém-exposto do tronco

caído. Fazia isso com frequência, como se as superfícies fossem ferimentos

gigantescos, como se ela fosse capaz de sentir a dor da árvore. De repente, viu

outra mão acariciar o toco da árvore a alguns metros de distância. Os tremores

naquela mão revelavam um coração em sintonia com o dela. Embora a mão

fosse pálida, Ye percebeu que era de um homem.

 Ela levantou o olhar. Era Bai Mulin. Um homem magro e delicado, que usava

óculos e era repórter do Diário da Grande Produção, o jornal do Corpo. Ele

tinha chegado havia dois dias para buscar notícias sobre a companhia dela. Ye se

lembrava de ler as matérias de Bai, escritas com um estilo belo, sensível e

elegante, inadequado para aquele ambiente grosseiro.

 — Ma Gang, venha cá — disse Bai para um rapaz que estava um pouco

afastado. Ma era musculoso e alto, como o cedro que ele havia acabado de

derrubar. O jovem se aproximou, e Bai perguntou: — Você sabe qual era a idade

desta árvore?

 — Dá para contar pelos anéis.

 Ma apontou para o toco.

 — Já contei. Mais de trezentos e trinta anos. Você se lembra de quanto tempo

 levou para serrar o tronco?

 — Nem dez minutos. Olha, eu sou o operador de motosserra mais rápido da

companhia. Qualquer que seja a unidade onde eu estou, a bandeira vermelha dos

operários-modelo vem atrás.

 A empolgação de Ma Gang era comum na maioria das pessoas em quem Bai

prestava atenção. Sair no Diário da Grande Produção era considerado uma

honra.

 — Mais de trezentos anos! Umas doze gerações. Quando esta árvore não

passava de um arbusto, ainda estávamos na dinastia Ming. Ao longo desses anos

todos, você consegue imaginar a quantas tempestades ela resistiu, quantos

acontecimentos presenciou? Mas você a derrubou em poucos minutos. Não

sentiu nada mesmo?

 — O que eu deveria sentir? — Ma Gang o encarou com uma expressão vazia.

— É só uma árvore. A única coisa que a gente tem de sobra por aqui é árvore.

Tem muitas outras árvores aqui, e muito mais velhas que esta.

 — Tudo bem. Volte ao trabalho. — Bai sacudiu a cabeça, sentou-se no toco e

suspirou.

 Ma Gang também balançou a cabeça, decepcionado porque o repórter não

estava interessado em fazer uma entrevista.

 — Intelectuais sempre fazem drama a troco de nada — murmurou. Quando

falou, deu uma olhada para Ye Wenjie, aparentemente a incluindo na crítica.

 O tronco foi levado. Pedras e tocos no chão abriram novas ranhuras na casca,

ferindo ainda mais o corpo do gigante. No lugar que havia ocupado antes, o peso

da árvore derrubada e arrastada cavou uma vala profunda nas camadas de folhas

em decomposição acumuladas ao longo dos anos, que logo se cobriu de água. As

folhas podres fizeram a água parecer vermelha, como sangue.

 — Wenjie, venha descansar um pouco.

 Bai apontou para a metade livre do toco em que estava sentado. Ye estava

mesmo cansada. Ela soltou as ferramentas, se aproximou e foi se sentar com Bai,

apoiando as costas nas dele.

 Depois de um silêncio demorado, Bai desabafou:

 — Eu sei o que você está sentindo. Nós dois somos os únicos que se sentem

assim.

 Ye continuou em silêncio. Bai sabia que ela provavelmente não ia responder.

 Era uma mulher de poucas palavras, que raramente conversava. Alguns recém-

chegados até pensavam que ela fosse muda.

 Bai continuou falando.

 — Visitei esta região há um ano. Lembro que cheguei por volta de meio-dia, e

meus anfitriões disseram que íamos almoçar peixe. Dei uma olhada no barraco

de madeira e só vi uma panela com água no fogo. Nada de peixe. Aí, assim que a

água começou a ferver, o cozinheiro saiu com um rolo de massa, parou na

margem do riacho que corria perto do barraco, bateu na água com o rolo algumas

vezes e conseguiu apanhar alguns peixes grandes… Que lugar fértil! Só que

agora, se você for ver aquele riacho, ele está morto, uma vala de água lamacenta.

Não sei dizer ao certo se o Corpo está trabalhando com construção ou destruição.

 — Onde você arrumou esse tipo de pensamento? — perguntou Ye em voz

baixa.

 Ela não mostrou sinal algum de aprovação ou desaprovação, mas Bai ficou

feliz de ouvir aquela voz falar qualquer coisa.

 — Só li um livro, e ele mexeu bastante comigo. Você sabe ler em inglês?

 Ye fez que sim.

 Bai retirou um livro de capa azul da bolsa. Deu uma olhada para os lados para

conferir que ninguém estava vendo e o entregou a ela.

 — Essa obra foi publicada em 1962 e teve muita influência no Ocidente.

 Wenjie se virou no toco para pegar o livro. Primavera silenciosa, dizia a capa,

de Rachel Carson.

 — Onde você achou isto?

 — O livro chamou a atenção do alto escalão. Os figurões querem distribuí-lo

para quadros1 selecionados, para fins de referência interna. Sou o encarregado de

traduzir a parte que tem a ver com florestas.

 Wenjie abriu o livro e mergulhou na leitura. Em um breve capítulo

introdutório, a autora descrevia uma cidade tranquila que morria em silêncio

devido ao uso de pesticidas. As frases simples e diretas estavam impregnadas da

inquietação profunda de Carson.

 — Pretendo escrever para a liderança em Beijing e informar sobre a postura

irresponsável do Corpo de Construção — disse Bai.

 Ye tirou os olhos do livro. Ela levou um tempo para processar as palavras de

Bai. Permaneceu em silêncio e voltou a olhar a página.

 — Fique com ele um pouco, se quiser. Mas na hora da leitura é melhor tomar

cuidado e não deixar ninguém ver. Você sabe o que eles acham desse tipo de

livro…

 Bai se levantou, lançou mais um olhar cuidadoso ao redor e foi embora.

Mais de quatro décadas depois, em seus últimos suspiros, Ye Wenjie relembraria

a influência de Primavera silenciosa em sua vida.

 O livro tratava apenas de um assunto limitado: os nocivos efeitos ambientais

do uso excessivo de pesticidas. Ainda assim, a perspectiva apresentada pela

autora teve grande repercussão em Ye. Ela havia imaginado que o uso de

pesticidas fosse algo normal, adequado — ou pelo menos neutro —, mas o livro

de Carson permitiu que ela visse que, pela perspectiva da natureza, o uso dessas

substâncias era equivalente à Revolução Cultural e igualmente destrutivo para o

mundo. Se isso fosse verdade, então quantos outros atos da humanidade que

pareciam normais ou até corretos eram, na realidade, prejudiciais?

 À medida que avançava em suas reflexões, uma dedução lhe deu calafrios: É

possível que a relação entre a humanidade e o mal seja semelhante à relação

entre o oceano e um iceberg que flutua em sua superfície? Tanto o oceano

quanto o iceberg são feitos do mesmo material. O iceberg só parece diferente

porque tem outra forma. Na realidade, é apenas uma parte do vasto oceano...

 Era impossível esperar um despertar moral da humanidade assim como era

impossível esperar que os humanos movessem a Terra com seus próprios

cabelos. O despertar moral exigia uma força externa à raça humana.

 Esse pensamento determinou o rumo da vida de Ye.

Quatro dias depois de receber o livro, Ye entrou no alojamento da companhia,

onde Bai estava morando, para devolver o exemplar. Ela abriu a porta e viu Bai

deitado na cama, exausto e coberto de serragem e lama. Quando viu Ye, ele se

levantou com esforço.

 — Você trabalhou hoje? — perguntou Ye.

 — Já faz muito tempo que estou aqui com a companhia. Não posso ficar

circulando o dia inteiro sem fazer nada. Preciso participar do trabalho. Esse é o

espírito da revolução, não é? Ah, trabalhei perto do pico do Radar. A floresta lá

estava muito fechada. Afundei até o joelho em folhas apodrecidas. Acho que vou

 ficar doente por causa daquele lugar.

 — Pico do Radar?

 Ye ficou chocada.

 — Isso. O regimento recebeu uma missão de emergência: derrubar árvores

para abrir uma zona de advertência em volta do pico.

 O pico do Radar era um lugar misterioso. O monte íngreme não tinha nome,

mas foi batizado em homenagem à enorme antena parabólica que havia no cume.

Na verdade, qualquer pessoa com um mínimo de bom senso sabia que aquilo não

era uma antena de radar: embora estivesse virada para um lugar diferente todo

dia, a antena nunca se mexia em um ritmo constante. Quando o vento soprava, a

parabólica produzia um uivo que dava para ser ouvido de longe.

 As pessoas da companhia de Ye só sabiam que o pico do Radar era uma base

militar. Segundo os moradores da região, quando a base foi construída, há três

anos, as Forças Armadas mobilizaram muita gente para abrir uma estrada até o

cume e instalar uma linha de transmissão de energia elétrica. Uma quantidade

imensa de equipamentos foi transportada montanha acima. No entanto, depois

que a base foi concluída, destruíram a estrada, e só restou uma trilha sinuosa e

difícil que se embrenhava por entre as árvores. Era comum ver helicópteros

pousando e decolando do cume.

 Nem sempre dava para ver a antena. Quando o vento soprava forte demais, ela

era recolhida.

 Mas, quando estava aberta, coisas estranhas aconteciam: os animais da

floresta ficavam barulhentos e agitados, bandos de pássaros surgiam do meio das

copas, e as pessoas sentiam náusea e tontura. Além disso, quem morava perto do

pico do Radar tinha tendência a perder cabelo. Segundo os habitantes locais,

esses fenômenos só começaram depois que a antena foi construída.

 Havia muitas histórias estranhas associadas ao pico do Radar. Certa vez, em

uma nevasca, a antena foi aberta e, na mesma hora, a neve virou chuva. Como a

temperatura perto do solo ainda estava abaixo do ponto de congelamento, a

chuva virou gelo nas árvores. Imensos cristais de gelo ficaram pendurados nos

galhos, e a floresta se transformou em um palácio de vidro. De tempos em

tempos, um galho se partia com o peso do gelo, e os cristais caíam no chão com

um baque alto. Às vezes, quando a antena era aberta em um dia sem nuvens,

começava a relampejar e cair raios, e o céu noturno se enchia com umas luzes

 estranhas.

 Logo após a chegada da companhia do Corpo de Construção, o comandante

ordenou que todos evitassem se aproximar do pico do Radar. Havia vigilância

intensa no local, e as patrulhas tinham permissão para disparar sem aviso.

 Na semana anterior, dois homens tinham saído para caçar e perseguido um

cervo até a base do pico do Radar, sem se dar conta de onde estavam colocando

os pés, e as sentinelas posicionadas no meio da encosta começaram a atirar. Por

sorte, a mata era tão fechada que os dois escaparam ilesos, embora um dos

homens tivesse urinado nas calças. Na reunião da companhia do dia seguinte, os

dois foram repreendidos. Talvez em virtude desse incidente a base tivesse

instruído o Corpo a criar uma zona de advertência em volta do pico. O fato de

que a base podia designar missões de trabalho para o Corpo de Construção era

um sinal de seu poder político.

 Bai Mulin pegou o livro das mãos de Ye e escondeu com cuidado debaixo do

travesseiro. Do mesmo lugar, retirou algumas folhas de papel cheias de linhas

escritas e entregou a Ye.

 — Este é o rascunho da minha carta. Será que você poderia ler?

 — Carta?

 — Eu falei para você que pretendia escrever para a liderança central em

Beijing.

 A caligrafia era muito desajeitada, e Ye precisou ler devagar. Apesar disso, o

conteúdo era informativo e tinha sólida base argumentativa. A carta começava

com uma descrição de como a cordilheira Taihang, antes um lugar

historicamente fértil, tinha se transformado em um deserto vazio em resultado do

desmatamento. Em seguida, mencionava o acúmulo recente e acelerado de

sedimentos no rio Amarelo. Por fim, concluía que as ações do Corpo de

Produção e Construção da Mongólia Interior teriam consequências ecológicas

devastadoras. Ela percebeu que o estilo de Bai era semelhante ao de Primavera

silenciosa: preciso e direto, mas também poético. Embora Ye tivesse formação

em disciplinas técnicas, apreciava textos literários.

 — É linda — disse ela, com franqueza.

 Bai assentiu com a cabeça.

 — Então vou enviá-la.

 Ele pegou algumas folhas novas de papel para passar a limpo, mas suas mãos

 tremiam tanto que não conseguiu traçar nenhum caractere. Aquela era uma

reação comum depois de se usar uma motosserra pela primeira vez. As mãos

trêmulas eram incapazes de segurar com firmeza um pote de arroz, que dirá

escrever algo legível.

 — Que tal se eu passar a limpo para você? — perguntou Ye. Ela pegou a

caneta de Bai.

 — Sua caligrafia é muito bonita — disse Bai ao ver a primeira linha de

caracteres de Ye na folha. Ele serviu um copo d'água para ela. Suas mãos

tremiam tanto que um pouco da água entornou. Ye afastou a carta.

 — Você estudava física? — perguntou Bai.

 — Astrofísica. Não serve para nada agora. — Ye nem sequer levantou a

cabeça.

 — Você estuda as estrelas! Como que isso não serve para nada? As faculdades

voltaram a abrir as portas recentemente, mas não estão aceitando alunos de pós-

graduação. Para uma pessoa tão instruída e capacitada como você, ser enviada

para um lugar destes…

 Ye não disse nada e continuou escrevendo. Não queria revelar a Bai que, para

alguém como ela, ter a possibilidade de entrar para o Corpo de Construção era

tirar a sorte grande. Não queria comentar como as coisas funcionavam… não

havia nada a ser dito.

 Reinou o silêncio na cabana, interrompido apenas pelo som da ponta da

caneta riscando o papel. Ye sentia a fragrância da serragem no corpo de Bai. Pela

primeira vez desde que o pai havia morrido, ela sentiu um pouco de carinho no

coração e conseguiu relaxar, baixando a guarda contra o mundo por um instante.

 Depois de mais de meia hora, ela terminou de passar a carta a limpo.

Registrou no envelope o endereço que Bai lhe disse e se levantou para se

despedir.

 Na porta, ela se virou.

 — Posso pegar seu casaco? Vou lavar para você.

 Ela ficou surpresa pela própria ousadia.

 — Não! Como é que eu permitiria isso? — Bai balançou a cabeça. — As

mulheres batalhadoras do Corpo de Construção trabalham tanto quanto os

homens todos os dias. Você precisa voltar e descansar um pouco. Amanhã vai ter

que se levantar às seis para trabalhar na montanha. Ah, Wenjie, vou retornar à

 sede da Divisão depois de amanhã. Vou explicar sua situação aos meus

superiores. Talvez ajude.

 — Obrigada. Mas eu gosto daqui. É tranquilo.

 Ye olhou para o contorno apagado da floresta escura ao luar.

 — Você está tentando fugir de algo?

 — Estou indo — disse Ye com um tom delicado. E foi.

 Bai viu sua silhueta esbelta desaparecer sob a lua. Depois, levantou os olhos

para a floresta escura que ela havia acabado de contemplar.

 Ao longe, a antena gigantesca no topo do pico do Radar se ergueu mais uma

vez, refletindo um brilho frio e metálico.

Numa tarde, três semanas depois, Ye Wenjie recebeu no acampamento uma

convocatória para comparecer à sede da companhia. Assim que entrou no

gabinete, sentiu que o clima não era dos melhores. O comandante da companhia

e o instrutor político estavam presentes, assim como um homem desconhecido

com uma expressão séria no rosto. Diante do desconhecido, na mesa, havia uma

valise preta e, ao lado, um envelope e um livro. O envelope estava aberto, e o

livro era o exemplar de Primavera silenciosa que ela havia lido.

 Naqueles anos, todo mundo conseguia perceber qual era a própria situação

política, e Ye Wenjie tinha uma sensibilidade especial para isso. Ela sentiu o

mundo ao redor se fechar como o gargalo de uma garrafa, sentiu-se comprimida

por todos os lados.

 — Ye Wenjie, este é o diretor Zhang, do Departamento de Política da Divisão.

Ele está aqui para investigar. — O instrutor político apontou para o

desconhecido. — Esperamos que você coopere plenamente e diga a verdade.

 — Você escreveu esta carta? — perguntou o diretor Zhang, retirando a carta

do envelope. Ye fez menção de pegá-la, mas Zhang segurou as folhas e mostrou

para ela uma a uma, até a última, a que mais interessava.

 A única assinatura era das "Massas revolucionárias".

 — Não, não escrevi isso. — Ye balançou a cabeça, assustada.

 — Mas a caligrafia é sua.

 — Sim, mas eu só passei a limpo para outra pessoa.

 — Quem?

 Normalmente, sempre que sofria alguma injustiça na companhia, Ye se

 recusava a protestar abertamente. Ela apenas ficava ressentida em silêncio, sem

jamais pensar em comprometer outras pessoas. Só que aquele momento era

diferente. Ela compreendia muito bem o que aquilo significava.

 — Ajudei um repórter do Diário da Grande Produção. Ele esteve no

acampamento algumas semanas atrás. O nome dele é…

 — Ye Wenjie! — Os olhos negros do diretor Zhang se fixaram nela como os

canos de duas armas. — Estou avisando: incriminar outras pessoas só irá piorar

sua situação. Já esclarecemos a questão com o camarada Bai Mulin. A única

participação dele foi enviar a carta para Hohhot conforme instruções suas. Ele

não fazia ideia do conteúdo da carta.

 — Ele… ele disse isso?

 Ye sentiu o mundo se apagar à sua volta.

 Em vez de responder, o diretor Zhang pegou o livro.

 — Sua carta foi claramente inspirada por este livro. — Ele mostrou o

exemplar para o comandante da companhia e para o instrutor político. —

Primavera silenciosa foi publicado nos Estados Unidos em 1962 e teve bastante

influência no mundo capitalista.

 Em seguida, retirou outro livro da valise. Tinha capa branca, com caracteres

pretos.

 — Esta é a tradução para o chinês. As autoridades competentes distribuíram a

obra para quadros selecionados como referência interna, para uma avaliação.

Agora, as autoridades competentes já apresentaram uma conclusão clara: o livro

é material tóxico de propaganda reacionária. Assume uma perspectiva de puro

idealismo histórico e defende uma teoria apocalíptica. Com a desculpa de

abordar problemas ambientais, tenta justificar a corrupção definitiva do mundo

capitalista. O conteúdo é extremamente reacionário.

 — Mas esse livro… não é meu.

 — O camarada Bai foi encarregado pelas autoridades competentes de ser o

tradutor. Então era perfeitamente legítimo que tivesse um exemplar. Claro, ele é

responsável pelo descuido e por ter permitido que você roubasse o livro

enquanto ele participava das atividades do Corpo de Construção. Ao ler essa

obra, você obteve armas intelectuais que poderiam ser usadas para atacar o

socialismo.

 Ye Wenjie permaneceu em silêncio. Ela sabia que já havia caído no fundo do

 poço. De nada adiantava lutar.

Ao contrário do que sugerem certos documentos históricos divulgados mais

tarde, Bai Mulin não pretendia incriminar Ye Wenjie no início. A carta que ele

escreveu para a liderança central em Beijing provavelmente fora inspirada por

uma noção genuína de responsabilidade. Na época, muitas pessoas escreviam

para a liderança central movidas por todo tipo de interesse. A maioria das cartas

era ignorada, mas alguns correspondentes chegavam a ver a própria sorte política

ir às alturas da noite para o dia, ao passo que outros sofriam duras retaliações. As

correntes políticas daquele período eram extremamente complexas. Como

repórter, Bai acreditava que era capaz de interpretar as correntes e evitar áreas

perigosas, mas foi com confiança demais ao pote, e sua carta acertou um campo

minado que ele não sabia que existia. Depois de descobrir como a carta fora

recebida, o medo superou tudo o mais. Para se proteger, ele decidiu sacrificar Ye

Wenjie.

 Meio século depois, o consenso histórico aponta esse acontecimento de 1969

como o divisor de águas na trajetória da humanidade.

 Sem querer, Bai se tornou uma figura histórica crucial, embora sem nunca

saber disso. Historiadores ficaram decepcionados ao registrar o restante pacato

de sua vida. Ele continuou trabalhando no Diário da Grande Produção até 1975,

quando o Corpo de Produção e Construção da Mongólia Interior foi dissolvido.

Em seguida, foi enviado para uma cidade na parte nordeste da China, a fim de

trabalhar para a Associação de Ciências até o começo dos anos 1980. E então

saiu do país e se mudou para o Canadá, onde lecionou em uma escola chinesa de

Ottawa até 1991, quando morreu de câncer de pulmão. Até o fim da vida, nunca

mencionou Ye Wenjie, e ninguém sabe se algum dia ele sentiu remorso ou

arrependimento por suas ações.

— Você foi muito bem tratada pela companhia, Wenjie. — O comandante da

companhia exalou uma nuvem densa de fumaça de seu cigarro enrolado à mão.

Ele olhou para o chão e continuou: — Embora você fosse suspeita política por

nascimento e pelo histórico familiar, sempre foi tratada como se fosse uma das

nossas. O instrutor político e eu conversamos muitas vezes com você sobre sua

tendência de se isolar das pessoas e sua falta de motivação para atingir o

 progresso. Nós queremos ajudá-la. Mas veja só a sua situação! Você cometeu um

erro muito grave!

 O instrutor político retomou o assunto.

 — Sempre tive a impressão de que ela nutria um ressentimento profundo pela

Revolução Cultural.

 — Escoltem a traidora à sede da Divisão esta tarde, junto com as provas de

seu crime — disse o diretor Zhang, com o rosto impassível.

As outras três prisioneiras na cela foram chamadas sucessivamente, até restar

apenas Ye. O montinho de carvão no canto tinha se esgotado, e não apareceu

ninguém para reabastecê-lo. O fogo da fornalha havia apagado já fazia algum

tempo. Estava tão frio dentro da cela que Ye precisou se enrolar no cobertor.

 Dois agentes vieram buscá-la antes do anoitecer. A mais velha, um quadro, foi

apresentada pelo outro agente como a representante militar da Corte

Intermediária Popular.2

 — Meu nome é Cheng Lihua — disse o quadro, apresentando-se.

 Tinha quarenta e poucos anos, usava uma casaca militar e óculos de armação

grossa. Seu rosto era simpático, e com certeza ela fora muito bonita na

juventude. Sorria ao falar e conquistava a simpatia imediata de todo mundo. Ye

Wenjie sabia que não era comum um quadro de escalão tão alto visitar uma

prisioneira prestes a ir a julgamento. Ela fez um gesto cauteloso com a cabeça

para Cheng e se acomodou no colchão estreito, a fim de abrir espaço para a

representante poder se sentar.

 — Está muito frio aqui. O que aconteceu com a fornalha? — Cheng lançou

um olhar de censura para o chefe do centro de detenção que estava parado na

porta da cela e se virou para Ye. — Hum, você é muito jovem. Mais até do que

eu tinha imaginado.

 Ela se sentou no colchão ao lado de Ye e remexeu a valise, ainda

murmurando.

 — Wenjie, você está muito confusa. Jovens são todos iguais, quanto mais

livros leem, mais confusos ficam. Ah, o que eu posso dizer…

 Ela achou o que estava procurando e pegou um maço pequeno de folhas de

papel. Ao encarar Ye, seus olhos se encheram de gentileza e carinho.

 — Mas não é nenhum grande problema. Que jovem nunca cometeu erros? Até

 eu já cometi alguns. Na adolescência, fazia parte da trupe artística do IV Exército

de Campanha e me especializei como cantora de músicas soviéticas. Certa vez,

durante uma sessão de estudos políticos, anunciei que a China devia desistir de

ser um país independente e se unir à URSS como república-membro. Assim, o

comunismo internacional ficaria ainda mais forte. Como eu era ingênua! Mas

quem já não foi ingênuo? O que está feito, feito está. Quando a gente comete um

erro, o mais importante é admitir e corrigir. E aí a gente pode continuar a

revolução.

 As palavras de Cheng pareciam interessar Ye. Porém, depois de passar por

tantos problemas, Ye havia aprendido a ter cautela. Ela não se atrevia a acreditar

naquela gentileza, que quase parecia um luxo.

 Cheng colocou a pilha de papéis na cama, na frente de Ye, e lhe entregou uma

caneta.

 — Vamos, assine isto. Depois poderemos ter uma conversa bem franca e

resolver suas dificuldades ideológicas. — O tom dela era o mesmo de uma mãe

que tentava convencer a filha a comer.

 Ye olhou para a pilha de papéis em silêncio e sem se mexer. Não pegou a

caneta.

 Cheng abriu um sorriso compassivo.

 — Pode confiar em mim, Wenjie. Eu garanto pessoalmente que esse

documento não tem nada a ver com o seu caso. Vá em frente. Assine.

 O outro agente, que permanecia afastado, acrescentou:

 — Ye Wenjie, a representante Cheng só está tentando ajudar. Ela tem

trabalhado muito por você.

 Cheng fez um gesto para que ele se calasse.

 — É compreensível. Coitadinha! Você está tão assustada. Alguns camaradas

não têm uma percepção política tão elevada como deveriam. Alguns membros

do Corpo de Construção e algumas pessoas na Corte Popular adotam métodos

simplistas demais e se comportam de um jeito muito grosseiro. É completamente

inadequado! Muito bem, Wenjie, que tal você ler o documento? Leia com

cuidado.

 Ye pegou e folheou o documento debaixo da fraca luz amarela da cela. A

representante Cheng não havia mentido. O documento realmente não tinha nada

a ver com seu caso.

 Era sobre o pai de Wenjie. Descrevia um histórico das interações e conversas

dele com certos indivíduos. A fonte era Wenxue, a irmã caçula de Wenjie. Uma

das guardas-vermelhas mais radicais, Wenxue sempre mostrara iniciativa para

denunciar o pai e redigira diversos relatórios para detalhar os supostos pecados

dele. Parte do material fornecido por ela acabou por levá-lo à morte.

 No entanto, Ye percebeu que aquele documento não havia saído das mãos de

sua irmã. Wenxue tinha um estilo intenso, impaciente. Ao ler os relatórios dela,

cada linha causava um impacto explosivo, como uma série de fogos de artifício.

Só que aquele documento era composto com um estilo sereno, experiente,

meticuloso. Quem falou com quem, quando, onde, o tema — cada detalhe fora

registrado, incluindo a data exata. Para alguém sem experiência, o conteúdo

parecia um diário tedioso, mas o propósito frio e calculista oculto naquelas

palavras era muito diferente das calúnias infantis de Wenxue.

 Ye não entendia muito bem qual era a intenção do documento, mas pressentia

que tinha algo a ver com determinado projeto de defesa nacional importante.

Como era filha de um físico, Ye imaginou que fizesse referência ao projeto

bomba-dupla,3 que havia chocado o mundo em 1964 e 1967.

 Durante aquele período da Revolução Cultural, para derrotar algum indivíduo

muito influente, era preciso reunir provas das deficiências dele em diversas

áreas. No entanto, para quem tramava essas maquinações políticas, o projeto

bomba-dupla impunha muitos obstáculos. Membros do escalão mais alto do

governo protegiam esse projeto a fim de evitar interferência da Revolução

Cultural. Era difícil para alguém com intenções nefastas espionar os mecanismos

internos do processo.

 Devido ao histórico familiar de Ye Zhetai, ele não atendia aos requisitos

políticos e não trabalhou no projeto bomba-dupla. Fizera apenas um pouco de

pesquisa teórica periférica relacionada ao plano. Mas era mais fácil usá-lo como

isca do que alguém envolvido com o cerne do projeto. Ainda que Ye Wenjie não

soubesse se o conteúdo daquele documento era verdadeiro ou falso, estava certa

de que cada caractere e cada sinal de pontuação tinham potencial para

representar um golpe político fatal. Além das pessoas envolvidas diretamente,

muitas outras poderiam ver seu destino mudar em razão daquelas folhas.

 No final do documento havia a assinatura de sua irmã, com caracteres

grandes, e Ye deveria assinar como testemunha. Ela percebeu que outras três

 testemunhas já haviam assinado.

 — Não sei de nada a respeito dessas conversas — disse ela, em voz baixa,

voltando a baixar o documento.

 — Como é que não sabe? Muitas dessas conversas aconteceram bem na sua

casa. Se sua irmã sabia, você também deve saber.

 — Não sei mesmo.

 — Mas essas conversas aconteceram de verdade. Você precisa confiar em nós.

 — Não falei que não era verdade. Só que realmente não sei de nada a respeito

delas. Então não posso assinar.

 — Ye Wenjie! — O outro agente fez menção de se aproximar, mas foi

impedido outra vez por Cheng. Ela se mexeu no colchão para se sentar ainda

mais perto de Ye e pegou uma de suas mãos frias.

 — Wenjie, vou abrir o jogo com você. Seu caso envolve a boa vontade da

promotoria. Por um lado, podemos tratá-lo como o mero caso de uma jovem

instruída enganada por um livro reacionário. Não é nada de mais. Nem seria

preciso passar pelo processo judicial. Você iria para uma aula de política,

escreveria alguns artigos de autocrítica e depois poderia voltar ao Corpo de

Construção. Por outro lado, podemos também processar seu caso com todo o

rigor da lei. Wenjie, você precisa entender que pode ser declarada uma

contrarrevolucionária ativa.

 "Agora, diante de casos políticos como o seu, todas as instâncias da

promotoria e todas as cortes preferem pecar pelo excesso de severidade, e não

pelo de leniência. Um tratamento com muita severidade seria apenas um erro

metodológico; já um tratamento com muita leniência seria um erro de

direcionamento político. Porém, em última instância, a decisão cabe ao comitê

de controle militar. Claro, tudo isso que estou falando deve ficar entre nós."

 O agente que acompanhava Cheng confirmou com a cabeça.

 — A representante Cheng está tentando salvá-la. Três testemunhas já

assinaram. Sua recusa não significa quase nada. Insisto para que você não se

confunda, Ye Wenjie.

 — É verdade, Wenjie — continuou Cheng. — Eu ficaria arrasada de ver uma

jovem instruída como você se arruinar por uma ninharia dessas. Realmente

quero salvá-la. Por favor, coopere. Olhe para mim. Você acha que eu seria capaz

de machucá-la?

 Mas Ye não olhou para a representante Cheng. A única coisa que viu foi o

sangue do pai.

 — Representante Cheng, não estou ciente dos acontecimentos descritos neste

documento. Não posso assinar.

 Cheng Lihua ficou quieta. Encarou Ye por um bom tempo, e o ar frio da cela

pareceu se solidificar. Em seguida, voltou a guardar lentamente o documento na

valise e se levantou. A expressão gentil não sumiu, mas parecia uma máscara de

gesso em seu rosto. Ainda com semblante bondoso e caridoso, ela foi até o canto

da cela, onde havia um balde para banho. Apanhou o recipiente e entornou

metade da água no corpo de Ye e a outra metade no cobertor, sem que os

movimentos jamais perdessem a calma metódica. Por fim, largou o balde e saiu

da cela, parando apenas para murmurar:

 — Sua vaquinha teimosa!

 O chefe do centro de detenção saiu por último. Ele lançou um olhar glacial

para Ye, que estava completamente encharcada, bateu e trancou a porta da cela.

 Com as roupas molhadas, o frio do inverno na Mongólia Interior envolveu Ye

como a mão de um gigante. Ela ouviu os dentes baterem, mas com o passar do

tempo até esse som desapareceu. O frio penetrou em seus ossos, e o mundo

diante de seus olhos deu lugar a um branco leitoso. Ye sentiu que o universo

inteiro era um bloco gigantesco de gelo, e ela era a única fagulha de vida que

existia. Era a menininha prestes a morrer congelada e não tinha nem sequer um

punhado de fósforos, só ilusões…

 O envolvente bloco de gelo aos poucos foi ficando transparente. À sua frente,

ela viu um edifício alto. Lá em cima, uma menina agitava uma bandeira muito

vermelha. Sua silhueta esbelta marcava um contraste agudo com a dimensão da

bandeira: era sua irmã, Wenxue. Desde que a irmã rompera de vez com a família

de autoridades acadêmicas reacionárias, Wenjie nunca mais tivera notícia da

caçula. Só recentemente descobrira que Wenxue havia morrido dois anos antes,

em uma das guerras entre facções da Guarda Vermelha.

 Enquanto Ye observava, a figura que agitava a bandeira se transformou em

Bai Mulin, e seus óculos refletiam as chamas que se espalhavam embaixo do

edifício; depois, se tornou a representante Cheng; depois, sua mãe, Shao Lin;

depois, seu pai. Embora o portador da bandeira mudasse, a bandeira tremulava

sem parar, como um pêndulo sem fim, contando os instantes que restavam na

 breve vida de Ye.

 Lentamente, a bandeira ficou embaçada. Tudo ficou embaçado. O gelo que

envolveu o universo voltou a prender Ye em seu centro. Só que, desta vez, o gelo

era preto.

1. "Quadro", quando usado no contexto do comunismo chinês, não se refere a um grupo, mas a um

indivíduo que integra o Partido ou o governo.

2. Durante essa fase da Revolução Cultural, a maioria das cortes populares intermediárias e superiores e das

promotorias (responsáveis por investigar e processar crimes) se encontrava sob o controle de comissões

militares. O representante militar tinha a palavra final em assuntos judiciais. (N. A.)

3. Esse é o nome chinês dado para os trabalhos relacionados a "596" e "Teste n. 6", os testes bem-sucedidos

das primeiras bombas nucleares de fissão e de fusão da China, respectivamente.