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O FRANCO-ATIRADOR E O CRIADOR DE AVES

O dia seguinte era o começo do fim de semana. Wang se levantou cedo e saiu de

bicicleta. Como fotógrafo amador, seus temas preferidos eram cenas de natureza

sem presença humana. No entanto, como já estava na meia-idade, não tinha mais

energia para se entregar a passeios tão indulgentes e só tirava fotos de cenas

urbanas.

 De modo consciente ou não, costumava escolher cantos da cidade que

retivessem algum aspecto do mundo selvagem: um lago ressecado em um

parque, a terra recém-revirada em um canteiro de obras, um pouco de mato

tentando brotar das rachaduras de um pedaço de concreto. Para eliminar a

extravagância de cores da cidade no fundo, ele só usava filme preto e branco. De

maneira um tanto inesperada, havia desenvolvido um estilo próprio e chamado

um pouco de atenção. Seus trabalhos foram escolhidos para duas exposições, e

Wang fazia parte da Associação de Fotógrafos. Sempre que saía para tirar fotos,

pegava a bicicleta e circulava pela cidade em busca de inspiração e composições

cativantes. Com frequência, passava o dia inteiro fora.

 Naquela manhã, Wang se sentia estranho. Embora seu estilo fotográfico

tendesse para o clássico, calmo e digno, parecia que naquela oportunidade ele

não conseguiria entrar no clima necessário para composições desse tipo. Em sua

cabeça, a cidade, despertando do sono, parecia construída sobre areia movediça.

A estabilidade era ilusória. Wang havia sonhado com aquelas duas bolas de

sinuca a noite inteira. Elas voavam por um espaço negro sem formar qualquer

padrão, e a bola preta desaparecia no fundo escuro e só revelava sua existência

de vez em quando, ao obscurecer a branca.

 Será que a natureza fundamental da matéria poderia mesmo ser a ausência

de leis? Será que a estabilidade e a ordem do mundo não passam de um

 equilíbrio dinâmico temporário ocorrido em um canto do universo, um

redemoinho efêmero em uma corrente caótica?

 Quando voltou a si, percebeu que estava ao pé do recém-concluído edifício da

Televisão Central da China. Ele parou no acostamento e levantou a cabeça para

contemplar a gigantesca torre em formato de A, tentando retomar a sensação de

estabilidade. Seu olhar acompanhou a ponta reta do edifício, cintilando na luz da

manhã e apontando para as profundezas azuis e infinitas do céu. De repente,

algumas palavras apareceram na sua mente: "franco-atirador" e "criador de

aves".

 Quando os integrantes da Fronteiras da Ciência debatiam a física, usavam

muito a abreviação "FC". Não estavam falando de "ficção científica", e sim das

expressões "franco-atirador" e "criador de aves". Era uma referência a duas

hipóteses, ambas relacionadas com a natureza fundamental das leis do universo.

 Na hipótese do franco-atirador, um atirador competente dispara contra um

alvo, criando furos de dez em dez centímetros. Agora, digamos que a superfície

do alvo seja habitada por criaturas inteligentes bidimensionais. Seus cientistas,

ao observar o universo, descobrem uma grande lei: "Existe um furo no universo

a cada dez centímetros". Eles interpretaram equivocadamente o resultado do

capricho momentâneo do franco-atirador, achando que fosse uma lei permanente

do universo.

 A hipótese do criador de aves, por sua vez, tem um quê de história de terror.

Todo dia de manhã, um criador de perus aparece para alimentar as aves. Um

peru cientista, após observar esse padrão se repetir sem alterações durante quase

um ano, faz a seguinte descoberta: "Todo dia de manhã, às onze, a comida

chega". Na manhã da véspera de Natal, o cientista anuncia essa lei para os

demais perus. Porém, às onze da manhã desse dia, a comida não chega: o criador

de perus aparece e mata todas as aves.

 Wang sentiu a estrada sob seus pés se deslocar como areia movediça. O

edifício em forma de A pareceu balançar e estremecer. Ele logo voltou os olhos

para a rua.

Para se livrar da ansiedade, Wang se forçou a usar todo o rolo de filme. Ele

voltou para casa antes do almoço. Sua esposa já havia saído com o filho deles e

ficaria fora por algum tempo. Normalmente, Wang teria se apressado para

 revelar o filme, mas naquele dia estava sem ânimo. Após um almoço rápido e

simples, decidiu tirar um cochilo. Como não havia dormido bem na noite

anterior, quando acordou já eram quase cinco da tarde. Só então se lembrou do

rolo de filme e entrou na apertada sala escura que tinha sido convertida a partir

de um closet.

 Depois de revelar o filme, Wang começou a olhar os negativos para ver se

alguma das fotos merecia ampliação. Porém, viu algo estranho logo na primeira

imagem, em uma foto de um gramado pequeno ao lado de um shopping grande.

O centro do negativo continha uma linha de marcas brancas minúsculas que,

vistas mais de perto, eram na verdade números: 1200:00:00.

 A segunda foto também tinha números: 1199:49:33. Assim como a terceira:

1199:40:18.

 Na verdade, todas as fotos do rolo tinham números parecidos, até a trigésima

sexta (e última) imagem: 1194:16:37.

 O primeiro pensamento de Wang foi que havia algo errado com o filme. A

câmera usada era uma Leica M2 de 1988 — totalmente analógica, de modo que

era impossível o aparelho acrescentar uma marcação de data. Com a lente

excepcional e os mecanismos internos sofisticados, ainda era considerada uma

excelente câmera profissional até mesmo para padrões digitais.

 Ao reexaminar os negativos, Wang descobriu outra peculiaridade com os

números: eles pareciam se adaptar ao fundo. Quando o fundo era preto, os

números eram brancos, e vice-versa. A mudança parecia ter sido concebida para

maximizar o contraste dos números em favor da visibilidade. No momento em

que Wang examinava o décimo sexto negativo, seu coração já estava acelerado,

e ele sentiu um calafrio subindo pela espinha.

 A foto era de uma árvore morta na frente de um muro antigo, manchado, com

partes pretas e brancas. Em um fundo assim, seria difícil ler até em cores. No

entanto, na foto, os números assumiram uma posição vertical para acompanhar a

curva do tronco da árvore, possibilitando que os dígitos brancos aparecessem

contra a cor escura da árvore morta, como se fossem uma serpente rastejante.

 Wang começou a analisar o padrão matemático dos números. À primeira vista,

achou que fosse alguma sequência predeterminada, mas a diferença entre os

números não era constante. Em seguida, imaginou que os números

representavam o tempo em forma de horas, minutos e segundos. Pegou seu

 registro de fotografias, que marcava a hora exata em que cada foto tinha sido

tirada, até os segundos, e descobriu que a diferença entre os números de duas

fotos consecutivas correspondia à diferença de tempo entre as horas em que elas

foram batidas.

 Uma contagem regressiva.

 A contagem começava com 1200 horas. E agora restavam cerca de 1194

horas, pouco menos de cinquenta dias.

 Agora? Não, no momento em que tirei a última foto. Será que a contagem

continua?

 Wang foi até a sala escura, pôs um rolo novo na Leica e começou a tirar fotos

aleatórias. Saiu até para a varanda a fim de dar alguns cliques externos. Depois,

retirou o filme e voltou para a sala escura. No filme revelado, os números

voltaram a aparecer em cada negativo como se fossem fantasmas. O primeiro

estava marcado 1187:27:39. A diferença equivalia ao tempo passado entre a

última foto do rolo anterior e a primeira do novo. Depois disso, os números

diminuíam a uma taxa de três ou quatro segundos por imagem: 1187:27:35,

1187:27:31, 1187:27:27, 1187:27:24… tal qual os intervalos das fotos rápidas

que havia tirado.

 A contagem continuava.

 Wang colocou mais um rolo na máquina. Tirou várias fotos apressadamente,

inclusive algumas com a tampa da lente fechada. Quando estava tirando o rolo

da máquina, sua mulher e o filho chegaram. Antes de entrar na sala escura para

revelar o filme, ele colocou outro rolo na Leica e pediu para a mulher.

 — Aqui, termine este rolo para mim.

 — O que devo fotografar? — perguntou a esposa, encarando o marido,

espantada. Wang nunca havia permitido que ninguém encostasse em sua câmera,

embora para ela e para o filho aquilo não despertasse nenhum interesse. Aos

olhos deles, era só uma antiguidade sem graça que custava mais de vinte mil

yuans.

 — Tanto faz. Tire foto do que quiser. — Wang enfiou a câmera nas mãos dela

e se meteu na sala escura.

 — Tudo bem. Dou Dou, que tal eu tirar umas fotos suas? — A esposa dele

virou a lente para o filho.

 De repente, Wang vislumbrou a imagem dos dígitos fantasmagóricos

 estampada no rosto de seu filho, como a corda de uma forca. Sentiu um arrepio.

 — Não, isso não. Tire foto de outra coisa.

 O obturador clicou: a esposa havia tirado a primeira foto.

 — Por que não consigo apertar de novo? — perguntou ela. Wang ensinou a

esposa a rodar o filme para avançá-lo.

 — Assim. Você precisa fazer isso depois de cada foto.

 Em seguida, ele voltou para dentro da sala escura.

 — Muito complicado! — A esposa de Wang, médica, não conseguia entender

por que alguém usaria um equipamento tão caro e obsoleto quando havia no

mercado opções de câmeras digitais de dez a vinte megapixels. Sem falar que o

marido usava filme preto e branco!

 Depois de revelar o terceiro filme, Wang levantou a película na frente da luz

vermelha. Viu que a contagem regressiva fantasmagórica continuava. Os

números apareciam com clareza em todas as fotos aleatórias, incluindo as poucas

tiradas com a lente tampada: 1187:19:06, 1187:19:03, 1187:18:59,

1187:18:56…

 Sua esposa bateu à porta da sala escura e disse que tinha terminado de tirar as

fotos. Wang abriu a porta e pegou a câmera. Suas mãos tremiam enquanto ele

tirava o rolo. Wang ignorou o olhar de preocupação da mulher, voltou com o

filme para dentro da sala escura e fechou a porta. Trabalhou às pressas e sem

cuidado, derrubando revelador e fixador pelo chão todo. Pouco tempo depois, as

imagens estavam reveladas. Ele fechou os olhos e rezou em silêncio. Por favor,

não apareça. Seja o que for, por favor, não apareça agora. Que não seja a

minha hora…

 Examinou o filme molhado com uma lupa. Não havia contagem. Sua mulher

tinha deixado o obturador com uma velocidade baixa, e o manuseio amador

fizera com que todas as imagens ficassem desfocadas. Mesmo assim, para Wang,

aquelas eram as fotos mais agradáveis que tinha visto na vida.

 Wang saiu da sala escura e soltou um grande suspiro. Estava coberto de suor.

A esposa estava na cozinha, preparando o jantar, e o filho brincava no quarto.

Ele se sentou no sofá e refletiu sobre a questão de modo mais racional.

 Em primeiro lugar, os números, que registravam com precisão a passagem do

tempo entre as fotos e exibiam sinais de inteligência, não podiam ter sido

impressos previamente no filme. Algo expôs aquelas sequências numéricas no

 filme. Mas o quê? Será que a câmera estava com algum defeito? Será que algum

mecanismo fora instalado sem que ele soubesse? Depois de tirar a lente e

desmontar o aparelho, Wang examinou o interior com uma lupa, conferiu cada

componente impecável e não viu nada fora do lugar. Em seguida, considerando

que os números apareciam mesmo nas fotos tiradas com a lente coberta, Wang

percebeu que a fonte de luz mais provável era alguma forma de raio invasor.

Mas como isso era tecnologicamente possível? Onde estava a origem desses

raios? Como eles poderiam ter sido controlados?

 Pelo menos diante da tecnologia do momento, esse tipo de poder seria

sobrenatural.

 A fim de ver se a contagem fantasmagórica tinha desaparecido, Wang colocou

outro filme na Leica e tirou mais fotos aleatórias. Quando o rolo foi revelado, a

tranquilidade passageira de Wang foi abalada de novo. Ele sentiu que estava

sendo levado à beira da insanidade. A contagem havia voltado. Pelo que os

números mostravam, ela nunca tinha parado, só não aparecera no filme utilizado

pela esposa.

 1186:34:13, 1186:34:02, 1186:33:46, 1186:33:35…

 Wang saiu correndo da sala escura e deixou o apartamento. Bateu com força à

porta do vizinho, Zhang, professor aposentado.

 — Professor Zhang, o senhor tem uma câmera? Não uma digital, mas uma

analógica!

 — Um fotógrafo profissional como você quer pegar minha câmera

emprestada? O que aconteceu com seu aparelho caro? Só tenho câmeras digitais

simples. Está tudo bem? Você está muito pálido.

 — Por favor, me empreste a câmera.

 Zhang voltou com uma câmera digital Kodak comum.

 — Aqui. Pode apagar as poucas fotos que estão na memória.

 — Obrigado!

 Wang pegou a câmera e voltou correndo para casa. Na verdade, tinha outras

três câmeras analógicas e uma digital, mas achou que seria melhor pegar uma

emprestada de outra pessoa. Ele olhou para a própria Leica no sofá, para o

punhado de rolos de filme, parou para refletir e decidiu colocar um filme novo

na Leica. Entregou a câmera digital emprestada para a esposa, que estava

colocando a mesa para o jantar.

 — Rápido! Tire mais algumas fotos, que nem antes.

 — O que você está fazendo? Olhe para a sua cara! O que está acontecendo?

 — Não se preocupe. Tire fotos!

 Ela colocou os pratos na mesa e foi até Wang, com os olhos carregados de

preocupação e medo.

 Wang enfiou a Kodak nas mãos do filho de seis anos, que estava prestes a

começar a jantar.

 — Dou Dou, venha ajudar o papai. Aperte este botão. Assim mesmo. Isso foi

uma foto. Aperte de novo. Isso foi outra foto. Fique tirando fotos assim.

Fotografe tudo o que você quiser.

 O menino aprendeu logo. Ficou muito interessado e tirou fotos rápidas. Wang

se virou, pegou a Leica no sofá e começou a tirar fotos também. Pai e filho

ficaram disparando os obturadores ensandecidamente. Perdida no meio dos

flashes, a mulher de Wang começou a chorar.

 — Wang Miao, sei que você tem estado sob muita pressão ultimamente, mas,

por favor, espero que não tenha…

 Wang terminou o filme da Leica e pegou a câmera digital do filho. Ficou

pensando por um instante e então, para evitar a esposa, entrou no quarto e tirou

mais algumas fotos com a câmera digital. Batia as fotos olhando pelo visor

óptico em vez de pela tela LCD, porque tinha medo de conferir o resultado,

embora logo fosse ter que encarar a situação.

 Wang tirou o filme da Leica e voltou para a sala escura. Fechou a porta e

trabalhou. Depois de revelar o filme, examinou as imagens com cuidado. Como

tremia, precisou segurar a lupa com as duas mãos. Nos negativos, a contagem

continuava.

 Wang saiu da sala escura e começou a olhar as imagens digitais da Kodak. Na

tela LCD, viu que as fotos tiradas pelo filho não tinham números, mas as suas

mostravam com clareza a contagem, em sincronia com os números no filme.

 Ao usar câmeras diferentes, Wang pretendia eliminar duas possíveis

explicações: problemas com a Leica ou com o filme. Porém, ao permitir que o

filho e a esposa tirassem algumas fotos, descobriu um resultado ainda mais

estranho: a contagem só aparecia nas fotos que ele tirava!

 Desesperado, Wang pegou o amontoado de filmes, que parecia um ninho

embolado de cobras, um monte de cordas presas em um nó impossível.

 Sabia que não teria como resolver esse mistério sozinho. Quem poderia ajudá-

lo? Seus antigos colegas da faculdade e os companheiros do Centro de Pesquisa

não serviriam. Como ele, todos tinham mentalidade técnica. Por intuição, Wang

sabia que esse problema ia além do lado técnico. Pensou em Ding Yi, mas o

homem estava enfrentando sua própria crise espiritual. Por fim, se lembrou da

Fronteiras da Ciência: seus integrantes eram grandes pensadores e continuavam

de mente aberta. Então Wang ligou para o número de Shen Yufei.

 — Dra. Shen, estou com um problema. Preciso encontrá-la.

 — Venha — disse Shen, desligando em seguida.

 Wang ficou surpreso. Shen era uma mulher de poucas palavras. Algumas

pessoas na Fronteiras da Ciência brincavam que ela era a versão feminina de

Hemingway. Mas o fato de Shen nem sequer ter perguntado qual era o problema

deixou Wang sem saber se devia ficar tranquilo ou ainda mais ansioso.

 Ele enfiou a confusão de filmes em uma bolsa e, com a câmera digital na mão,

saiu às pressas do apartamento, enquanto a esposa o observava com um olhar

ansioso. Wang podia ter pegado o carro, mas, mesmo na cidade muito iluminada,

queria estar acompanhado. Chamou um táxi.

Shen morava em um condomínio de luxo acessível por um dos trens urbanos

mais recentes. Naquela área, a iluminação era muito mais fraca. As casas

ficavam dispostas em torno de um pequeno lago artificial abastecido de peixes, e

à noite o lugar parecia um vilarejo.

 Era nítido que Shen tinha uma condição financeira confortável, mas Wang

nunca conseguiu descobrir a origem daquela riqueza. Nem o antigo cargo de

pesquisadora nem o emprego atual em uma empresa privada poderiam fornecer

uma renda tão grande. Apesar disso, o interior da casa não exibia sinais de luxo.

O espaço era usado como ponto de encontro para a Fronteiras da Ciência, e

Wang sempre achou que parecia uma biblioteca com uma sala de reuniões.

 Na sala de estar, Wang se deparou com Wei Cheng, o marido de Shen. Wei

tinha cerca de quarenta anos e o aspecto de um intelectual sóbrio e honesto.

Além do nome, Wang sabia pouco sobre ele. Shen não havia falado muito ao

apresentar o marido. Aparentemente, ele estava desempregado, já que passava o

dia inteiro em casa. Nunca demonstrou interesse nas conversas da Fronteiras da

Ciência, mas parecia acostumado à presença de tantos acadêmicos em sua casa.

 No entanto, não era desocupado e parecia estar realizando alguma pesquisa

em casa, sempre perdido em pensamentos. Toda vez que via algum visitante,

cumprimentava de um jeito distraído e voltava para seu quarto no andar de cima.

Passava a maior parte do dia ali dentro. Certa vez, Wang viu de relance o interior

do quarto por uma porta entreaberta e reparou em algo impressionante: uma

potente estação de trabalho da HP. Tinha certeza do que vira porque a estação de

trabalho era do mesmo modelo utilizado por ele no Centro de Pesquisa: case cor

de grafite, modelo RX8620, de quatro anos. Parecia muito estranho ter uma

máquina que custava mais de um milhão de yuans só para uso pessoal. O que

será que Wei Cheng fazia com aquilo o dia inteiro?

 — Yufei está um pouco ocupada agora. Você pode esperar um instante? —

perguntou Wei Cheng, antes de subir a escada. Wang tentou esperar, mas

percebeu que não conseguia ficar parado, então foi atrás de Wei Cheng. Wei

estava prestes a entrar no quarto com a estação de trabalho quando percebeu

Wang atrás de si. Sem parecer irritado, apontou para o cômodo à frente do seu e

disse: — Ela está aí dentro.

 Wang bateu à porta, que não estava trancada e se abriu depressa. Shen estava

sentada diante de um computador, jogando. Wang ficou surpreso ao ver que ela

estava com um traje V.

 O traje V era um equipamento muito usado pela comunidade de gamers,

composto por um capacete de visor panorâmico e uma jaqueta de resposta

sensorial. O traje permitia que o jogador sentisse tudo o que acontecia no jogo: a

força de um soco, uma punhalada, o calor de chamas etc. Também era capaz de

gerar sensações de calor e frio extremos, e até de simular a exposição a uma

nevasca.

 Wang se aproximou de Shen pelas costas. Como o jogo só era exibido no

visor panorâmico do capacete, a tela do computador não tinha nenhuma imagem

colorida. De repente, Wang se lembrou do comentário de Shi Qiang quanto a

decorar endereços de sites e e-mails. Ele olhou para o monitor, e a URL do site do

jogo chamou sua atenção: www.3corpos.net

 Shen tirou o capacete, a jaqueta e colocou os óculos, que pareciam grandes

demais no rosto fino. Não esboçando nenhuma expressão, fez um gesto com a

cabeça para Wang, sem dizer nada. Wang tirou a confusão de filmes da bolsa e

começou a explicar a estranha experiência. Shen prestou muita atenção na

 história, pegando os filmes e olhando apenas casualmente para as fotos. Embora

Wang tenha ficado surpreso, a postura de Shen confirmou que ela não ignorava o

que estava acontecendo com ele. Wang quase parou de falar, mas Shen

continuou acenando com a cabeça, indicando que ele deveria continuar.

 Quando ele terminou, Shen falou pela primeira vez.

 — Como anda o projeto de nanomateriais que você está conduzindo?

 Essa mudança de assunto deixou Wang confuso.

 — O projeto de nanomateriais? O que ele tem a ver com isto? — Wang

apontou para os filmes revelados.

 Shen não respondeu, mas continuou encarando Wang, esperando que ele

respondesse à pergunta. Aquele sempre tinha sido o estilo dela, nunca uma

palavra desperdiçada.

 — Interrompa a pesquisa — disse ela.

 — O quê? — Wang não sabia se tinha ouvido direito. — Do que você está

falando?

 Shen ficou quieta.

 — Interromper? É um projeto nacional fundamental!

 Shen continuou sem falar nada, apenas o encarando com uma expressão

tranquila.

 — Você precisa me dar um motivo.

 — Só interrompa. Tente.

 — O que você sabe? Diga!

 — Já falei tudo que podia.

 — Não dá simplesmente para interromper a pesquisa. É impossível!

 — Interrompa. Tente.

 A conversa sobre a contagem regressiva acabou aí. Depois disso, por mais que

Wang insistisse, Shen só repetia "Interrompa. Tente".

 — Agora eu entendo — disse Wang. — A Fronteiras da Ciência não é só um

grupo de discussão sobre teoria fundamental, como vocês afirmavam. A ligação

da organização com a realidade é muito mais complexa do que eu tinha

imaginado.

 — Não. É o contrário. Sua impressão se deve ao fato de que a Fronteiras da

Ciência trata de questões muito mais fundamentais do que você imagina.

 Desesperado, Wang se levantou para ir embora sem se despedir. Em silêncio,

 Shen acompanhou a visita até a porta e esperou que entrasse no táxi.

 Na mesma hora, outro carro chegou e brecou de repente diante da porta. Um

homem saiu. Com a luz fraca de dentro da casa, Wang reconheceu o sujeito

imediatamente.

 Era Pan Han, um dos integrantes mais proeminentes da Fronteiras da Ciência.

Como biólogo, ele havia conseguido prever defeitos congênitos associados ao

consumo prolongado de alimentos geneticamente modificados. Também previra

os desastres ecológicos resultantes do cultivo de plantações geneticamente

modificadas. Ao contrário dos profetas do apocalipse que prenunciavam

catástrofes sem dar qualquer informação específica, as previsões de Pan sempre

continham uma profusão de detalhes que mais tarde acabavam se confirmando.

O índice de acerto do biólogo era tão alto que havia quem dissesse que ele vinha

do futuro.

 O outro motivo de sua fama era o fato de que ele tinha criado a primeira

comunidade experimental da China. Diferente dos grupos utópicos que

clamavam por uma "volta à natureza", a China Pastoral não ficava na zona rural,

e sim no meio de uma das maiores cidades do país. A comunidade não detinha

nenhuma propriedade. Tudo o que era necessário para o dia a dia, incluindo

alimentos, era obtido com o lixo urbano. Contrariando muitas previsões, a China

Pastoral não só sobreviveu, como prosperou. Agora, contava com mais de três

mil integrantes permanentes, e inúmeras pessoas haviam ingressado nela por

períodos breves a fim de conhecer aquele estilo de vida.

 Graças a esses dois sucessos, as opiniões de Pan a respeito de questões sociais

tinham cada vez mais peso. Ele acreditava que o progresso tecnológico era uma

doença da sociedade. A explosão do desenvolvimento tecnológico era análoga ao

crescimento de células cancerígenas, e os resultados seriam os mesmos: o

esgotamento de todas as fontes de nutrição, a destruição dos órgãos e, por fim, a

morte do organismo. Ele defendia o fim de tecnologias nocivas, como

combustíveis fósseis e energia nuclear, em favor da manutenção de tecnologias

menos agressivas, como energia solar e energia hidrelétrica de pequena escala.

Pan acreditava na descentralização gradual das metrópoles modernas mediante a

distribuição mais eficiente das populações em cidades e vilarejos menores. Com

base nas tecnologias mais avançadas, construiria uma nova sociedade agrícola.

 — Ele está aqui? — perguntou Pan a Shen, apontando para a casa.

 Shen não respondeu, mas não saiu do caminho.

 — Preciso alertar tanto ele quanto você. Não nos obriguem a agir. — O tom

de Pan era frio.

 Shen gritou para o taxista.

 — Você já pode ir.

 Quando o táxi saiu, Wang não conseguiu mais ouvir a conversa entre os dois,

mas olhou para trás e viu que Shen não deixou Pan entrar na casa.

Quando Wang chegou em casa, já passava de meia-noite. Ao sair do táxi, um

Volkswagen Santana preto parou a seu lado. O vidro da janela abaixou, e uma

nuvem de fumaça saiu de dentro. O corpulento Shi Qiang estava no banco do

motorista.

 — Professor Wang! Acadêmico Wang! Como o senhor tem passado esses

últimos dias?

 — Por acaso você está me seguindo? Não tem nada melhor para fazer?

 — Ora, não me entenda mal. Eu poderia ter passado direto, mas preferi ser

educado e dar um olá. O senhor está transformando minha gentileza em um

esforço ingrato. — Shi exibiu o sorriso debochado característico. — E aí?

Conseguiu descobrir alguma informação útil lá?

 — Já falei, não quero tratar nada com você. Por favor, daqui para a frente me

deixe em paz.

 — Tudo bem. — Shi ligou o carro. — Não vou passar fome abrindo mão da

hora extra que eu ganho para isto. Queria não ter perdido o jogo de futebol.

Wang entrou em casa. Sua esposa já estava dormindo. Ele a ouviu se revirar na

cama, murmurando algo, ansiosa. Com certeza, o comportamento estranho do

marido naquele dia tinha resultado em algum pesadelo. Wang tomou alguns

comprimidos para dormir, deitou-se na cama e, depois de bastante tempo,

adormeceu.

 Seus sonhos foram caóticos, mas havia uma constante: a contagem regressiva

fantasmagórica, suspensa no ar. Mesmo antes de dormir, ele já sabia que

sonharia com aquilo. Nos sonhos, Wang atacou a contagem. Enlouquecido, ele

golpeou a sequência numérica, mas nada que fizesse era capaz de mudar aquilo.

Os números continuavam pairando no meio do sonho, avançando sem parar.

 Enfim, quando a frustração estava ficando quase insuportável, ele acordou.

 Ao abrir os olhos, viu o teto, pouco nítido. Do lado de fora, as luzes da cidade

lançavam um brilho fraco nas cortinas. Porém, teve companhia ao voltar à

realidade: a contagem regressiva. Ela ainda pairava diante de seus olhos. Os

números eram finos, mas brilhavam muito, com uma luminosidade branca

intensa.

 1180:05:00, 1180:04:59, 1180:04:58, 1180:04:57…

 Wang olhou à sua volta, explorando as sombras difusas do quarto. Agora tinha

certeza de que estava acordado, mas a contagem não desapareceu. Fechou os

olhos, e a contagem continuou na escuridão, como um fiapo de mercúrio

escorrendo pelas penas de um cisne negro. Wang abriu e esfregou os olhos, e

ainda assim a contagem persistiu. Independente de para onde olhasse, os

números permaneciam no centro de tudo.

 Movido por um terror indescritível, Wang se sentou. A contagem se aferrava a

ele. Wang saiu da cama, puxou as cortinas e abriu as janelas. A cidade,

adormecida, ainda estava muito iluminada. A contagem pairava no meio desse

cenário grandioso, como uma legenda em uma tela de cinema.

 Wang sentiu-se sufocado. Tentou abafar um grito. Sua esposa acordou com o

susto e, ansiosa, perguntou o que havia de errado. Wang se forçou para ficar

calmo e tranquilizá-la, dizendo que não era nada. Voltou a se deitar na cama,

fechou os olhos e passou o resto da noite difícil sob o brilho constante da

contagem.

 De manhã, tentou agir de maneira natural diante da família, mas não

conseguiu enganar a esposa. Ela perguntou se os olhos de Wang estavam com

algum problema, se ele estava conseguindo enxergar direito.

 Depois do café, Wang ligou para o Centro de Pesquisa e pediu para tirar o dia

de folga. Foi ao hospital. No caminho, a impiedosa contagem persistia

estampada no mundo real, conseguindo ajustar o próprio brilho de modo a

aparecer com clareza diante de qualquer fundo. Wang tentou até ofuscar os

números por um tempo, olhando direto para o sol nascente. Mas não adiantou

nada. Os números infernais ficaram pretos e se destacaram da esfera solar como

sombras, o que pareceu ainda mais assustador.

 O hospital Tongren estava muito movimentado, porém ele conseguiu uma

consulta com um oftalmologista famoso, colega de faculdade de sua mulher.

 Wang pediu para o médico avaliá-lo, mas não descreveu nenhum sintoma. Após

um exame cuidadoso, o oftalmologista disse que os dois olhos estavam normais,

sem qualquer sinal de doença.

 — Tem alguma coisa persistente incomodando meus olhos. Está sempre

atrapalhando meu campo de visão. — Ao dizer isso, viu os números pairando

diante do rosto do médico.

 1175:11:34, 1175:11:33, 1175:11:32, 1175:11:31…

 — Ah, você está falando de moscas volantes. — O oftalmologista pegou um

receituário e começou a escrever. — Isso é comum na nossa idade, consequência

de um obscurecimento do cristalino. Não é fácil de curar, mas também não é

nada muito sério. Vou receitar um pouco de iodo em gotas e vitamina D… Pode

ser que elas sumam, mas é bom não criar muita expectativa. Não se preocupe

mesmo, isso não vai afetar sua visão. Só precisa se acostumar a ignorar.

 — Moscas volantes… Pode me dizer qual é o aspecto delas?

 — Não existe nenhuma forma definida. Varia de acordo com a pessoa. Para

algumas, são pontinhos pretos minúsculos; para outras, parecem girinos.

 — E se uma pessoa vê uma série de números?

 O médico parou de escrever.

 — Você está vendo números?

 — É, bem no meio do campo de visão.

 O médico afastou o papel e a caneta e olhou para Wang com uma expressão

de piedade.

 — Assim que você entrou, percebi que tem trabalhado demais. No último

reencontro da turma, Li Yao me disse que você estava sofrendo muita pressão no

laboratório. Na nossa idade, precisamos tomar cuidado. Nossa saúde já não é

mais a mesma.

 — Quer dizer que isso tem um fundo psicológico?

 O médico anuiu.

 — Se fosse outra pessoa, eu sugeriria uma consulta com um psiquiatra. Mas

não é nada sério, só exaustão. Que tal você descansar por alguns dias? Tire umas

férias. Vá ficar com Yao e seu filho… como é o nome dele? Dou Dou, certo?

Não se preocupe. Isso vai sumir logo.

 1175:10:02, 1175:10:01, 1175:10:00, 1175:09:59…

 — Vou falar o que estou vendo. É uma contagem regressiva! Um segundo de

 cada vez, com precisão cirúrgica. Você está dizendo que isso está tudo na minha

cabeça?

 O médico abriu um sorriso tolerante.

 — Sabe quanto a nossa visão pode ser afetada pela mente? Mês passado,

recebemos uma paciente… uma menina, devia ter uns quinze ou dezesseis anos.

Ela estava no meio de uma aula quando, de repente, parou de enxergar, ficou

completamente cega. Acontece que todos os testes mostraram que não havia

nenhum problema fisiológico nos olhos. Por fim, ela se tratou com um

profissional do Setor de Psiquiatria durante um mês. Do nada, a visão voltou.

 Wang sabia que estava perdendo tempo ali. Levantou-se.

 — Tudo bem, vamos parar de falar dos meus olhos. Só quero fazer mais uma

pergunta: você conhece algum fenômeno físico que possa agir à distância e levar

uma pessoa a ter visões?

 O médico pensou por um instante.

 — Sim, conheço. Algum tempo atrás, participei da equipe médica que atendeu

os tripulantes do veículo espacial Shenzhou 19. Alguns astronautas que

realizaram atividades fora da nave disseram ter visto clarões que não existiam.

Os astronautas na Estação Espacial Internacional descreveram experiências

parecidas. Isso acontecia porque, durante períodos de atividade solar intensa,

partículas de alta energia atingiam a retina e provocavam a visão dos clarões. Só

que você está falando de números… até de uma contagem regressiva. Nenhuma

atividade solar causaria isso.

 Wang saiu do hospital meio atordoado. A contagem continuava pairando

diante de seus olhos, e ele tinha a sensação de estar seguindo os números,

seguindo um fantasma que se recusava a abandoná-lo. Comprou óculos escuros e

colocou no rosto para que as pessoas não vissem seus olhos oscilando como se

ele fosse um sonâmbulo.

 Antes de entrar no laboratório principal do Centro de Pesquisa em

Nanotecnologia, Wang tirou os óculos. Ainda assim, seus colegas repararam que

sua aparência traía um estado mental perturbado e o observaram com

preocupação.

 Wang viu que a câmara de reação principal no meio do laboratório continuava

em funcionamento. O compartimento principal do aparato gigantesco era uma

esfera ligada a muitos canos.

 Eles haviam produzido quantidades reduzidas de um nanomaterial novo e

ultraforte, que fora chamado de "lâmina voadora". Porém, até o momento, todas

as amostras eram feitas com técnicas de construção molecular — isto é, usando

uma sonda molecular em escala nano para empilhar as moléculas uma a uma,

como se fossem tijolos em um muro. Esse método demandava muitos recursos, e

os resultados poderiam ser considerados as joias mais preciosas do mundo. Para

a produção de quantidades grandes, essa forma não era muito prática.

 No momento, o laboratório estava tentando desenvolver uma reação catalítica

como substituto para a construção molecular, de modo que fosse possível

empilhar uma grande quantidade de moléculas na ordem certa. A câmara de

reação principal podia executar uma grande variedade de reações em pouco

tempo, usando combinações moleculares diferentes. Havia tantas combinações

possíveis que, com os métodos tradicionais de teste manual, o mesmo resultado

teria demorado mais de cem anos. Além disso, o aparato extrapolava as reações

que aconteciam com simulações matemáticas. Quando a reação alcançava

determinado ponto, o computador gerava um modelo matemático com base em

produtos intermediários e terminava o restante da reação com simulações, o que

aumentava muito a eficiência do experimento.

 Tão logo viu Wang, o diretor do laboratório correu até ele e começou a relatar

uma série de defeitos ocorridos na câmara de reação principal — um ritual,

instaurado recentemente, sempre que Wang chegava ao trabalho. Àquela altura,

já fazia mais de um ano que a câmara de reação principal estava em

funcionamento constante, o que resultava em erros de medição que exigiam o

desligamento do aparato para manutenção. No entanto, na condição de

pesquisador-chefe do projeto, Wang insistia que a máquina só fosse desligada

depois da conclusão do terceiro conjunto de combinações moleculares. Os

técnicos eram obrigados a compensar com uma quantidade cada vez maior de

gambiarras na câmara de reação. E essas gambiarras exigiam suas próprias

gambiarras, uma situação que exauria a equipe de trabalho.

 Mas o diretor do laboratório tomou o cuidado de não tocar no assunto do

desligamento e da interrupção da máquina, pois sabia que esse tipo de tema

tendia a enfurecer Wang Miao. Ele se limitou a listar as dificuldades, embora a

intenção implícita fosse clara.

 Havia engenheiros agitados em volta da câmara de reação principal, como

 médicos com um paciente em estado crítico, tentando fazê-lo resistir um pouco

mais. Na frente disso tudo, a contagem regressiva apareceu.

 1174:21:11, 1174:21:10, 1174:21:09, 1174:21:08…

 Interrompa. Tente. Wang pensou nas palavras de Shen.

 — Quanto tempo levaria para desmontar completamente os sensores? —

perguntou Wang.

 — Quatro ou cinco dias. — Agora que o diretor do laboratório via uma

fagulha de esperança, acrescentou às pressas: — Se a gente acelerar, vai levar só

três dias. Posso garantir, chefe Wang!

 Não estarei cedendo, pensou Wang. O equipamento precisa mesmo de

manutenção, então é preciso interromper temporariamente o experimento. Não

tem nenhum outro motivo. Wang se virou para o diretor do laboratório e olhou

para ele através da contagem flutuante.

 — Interrompa o experimento e realize a manutenção. Cumpra o cronograma

prometido.

 — Sem problema, chefe Wang. Vou passar um cronograma atualizado

imediatamente. Podemos interromper a reação hoje à tarde!

 — Podem interrompê-la agora mesmo.

 O diretor o encarou, incrédulo, mas logo se empolgou de novo, como se

tivesse medo de perder a oportunidade. Pegou o telefone e anunciou a ordem de

interromper a reação. Pesquisadores e técnicos, todos exaustos, também se

empolgaram. Sem perder um segundo, começaram o processo de desligamento

da câmara de reação principal, acessando centenas de comutadores complexos.

As diversas telas de controle foram se apagando, uma a uma, até a tela principal

demonstrar que câmara de reação estava com seu status interrompido.

 Quase ao mesmo tempo, a contagem regressiva nos olhos de Wang também

parou. A última sequência era 1174:10:07. Alguns segundos depois, os números

piscaram e sumiram.

 Quando o mundo voltou ao normal, livre dos números fantasmagóricos, Wang

soltou um suspiro demorado, como se acabasse de subir à superfície depois de

ficar muito tempo embaixo d'água. Esgotado, sentou-se e percebeu que as outras

pessoas ainda estavam olhando para ele.

 Wang se virou para o diretor do laboratório.

 — A manutenção dos sistemas é responsabilidade da Divisão de

 Equipamentos. Que tal vocês todos do grupo de pesquisa tirarem alguns dias de

folga? Sei que todo mundo tem trabalhado muito.

 — Chefe Wang, o senhor também está cansado. O engenheiro-chefe Zhang

pode tomar conta de tudo por aqui. Por que o senhor não volta para casa e

descansa também?

 — Sim, estou cansado — respondeu Wang.

 Depois que o diretor do laboratório foi embora, Wang pegou o celular e ligou

para Shen Yufei. Ela atendeu depois de um toque.

 — Quem ou o que está por trás disso? — perguntou Wang, tentando sem

sucesso falar com um tom de voz calmo.

 Silêncio.

 — O que vai acontecer quando a contagem terminar?

 Mais silêncio.

 — Você está me ouvindo?

 — Estou.

 — Por que nanomateriais? Isso não é um acelerador de partículas. Só pesquisa

aplicada. Por acaso é digno de atenção?

 — Não cabe a nós decidir se algo é ou não é digno de atenção.

 — Já chega! — gritou Wang no telefone. De repente, o terror e o desespero

dos últimos dias se transformaram em uma fúria incontrolável. — Você acha

mesmo que serei enganado com esses truques fajutos? Acha que podem impedir

o progresso da tecnologia? Confesso que, por enquanto, não consigo explicar

como vocês estão fazendo isso. Mas é só porque não pude ver através da cortina

do seu ilusionista barato.

 — Quer dizer que você gostaria de ver a contagem regressiva em uma escala

ainda maior?

 A pergunta de Shen deixou Wang atordoado por um instante. Ele fez o

possível para se acalmar, para não cair em uma armadilha.

 — Pode guardar seus truques. E daí se você me mostrar em uma escala

maior? Vai continuar sendo apenas uma ilusão. Vocês podem projetar um

holograma no céu, como a Otan fez na última guerra. Com um laser potente o

bastante, poderiam até projetar uma imagem na superfície da Lua! O franco-

atirador e o criador de aves seriam capazes de manipular os elementos em uma

escala inacessível aos seres humanos. Por exemplo, vocês podem fazer a

 contagem regressiva aparecer na superfície solar?

 Wang ficou de boca aberta. Estava chocado com as próprias palavras. Sem se

dar conta, citara as duas hipóteses que devia ter evitado. Sentia-se prestes a cair

na mesma armadilha mental que capturara as outras vítimas.

 — Não posso prever todos os seus truques — continuou ele, tentando tomar a

iniciativa. — Talvez seu ilusionista fajuto consiga dar um jeito de fazer com que

essa farsa parecesse real até no sol. Uma demonstração convincente de verdade

precisa ser feita em uma escala ainda maior.

 — A questão é se você aguenta — disse Shen. — Somos amigos. Quero

ajudá-lo a evitar a sina de Yang Dong.

 A referência ao nome de Yang provocou arrepios em Wang. Porém, sentindo

outra onda de raiva, agiu impulsivamente.

 — Você vai aceitar meu desafio?

 — Claro.

 — O que vocês vão fazer?

 — Você tem um computador ligado à internet? Certo, acesse o seguinte site:

www.qsl.net/bg3tt/zl/mesdm.htm. Abriu? Agora imprima a página e fique com

ela.

 Wang viu que o site era apenas uma tabela de código Morse.

 — Não entendi. Isto…

 — Nos próximos dois dias, por favor, vá para algum lugar onde seja possível

ver a radiação cósmica de fundo em micro-ondas. Vou enviar os detalhes para

seu e-mail.

 — O que… o que você vai fazer?

 — Eu sei que seu projeto em nanomateriais foi interrompido. Você pretende

retomá-lo?

 — Claro. Daqui a três dias.

 — Então a contagem regressiva vai continuar.

 — Vou ver em que escala?

 Seguiu-se um longo silêncio. Aquela mulher, que estava agindo como porta-

voz de alguma força além de qualquer compreensão humana, cortou todas as

saídas de Wang.

 — Daqui a três dias, no dia 14, entre uma e cinco da manhã, o universo inteiro

vai piscar para você.