1 A Brisa que Precede a Tempestade (parte 1/2)

Cinco anos atrás.

Na pequena aldeia Nimbus, os primeiros raios do sol matinal começaram a surgir, e junto deles, os camponeses iniciaram suas rotinas diárias. Gradualmente as ruas encheram-se de vida, enquanto o sol se erguia ao céu iluminando as paredes das rústicas casas feitas de madeira bruta e pedregulhos.

Logo pude ouvir o som das carroças cruzando a estrada de terra e as crianças brincando por entre os vãos das casas. A luz do dia atingiu a janela do meu quarto, penetrando pelas frestas e iluminando o ambiente. Eu estava no canto, deitado em minha cama. O brilho do sol chegou ao meu rosto, deixando-me um pouco incomodado com a claridade.

— Tsc… — resmunguei enquanto cobria o rosto com minha coberta.

Finalmente abri meus olhos e tive o primeiro vislumbre daquele novo dia. O machado apoiado na parede oposta a mim refletia meu rosto, nele eu podia ver claramente a distinta cor azul do meu cabelo e meus olhos azul-acinzentados.

Quase imediatamente, escutei três batidas na porta do quarto, seguidas de uma voz calma e gentil.

— Kayon, o café está pronto.

Ao passo que me levantei, espreguicei-me, esfreguei os olhos e fui cambaleando sonolento em direção à porta. Cruzando ela, avistei a silhueta de minha mãe pondo os pratos à mesa. Seu cabelo loiro cobria boa parte de suas costas, enquanto duas mechas longas repousavam sobre seus ombros.

Ao me notar, ela virou-se para me cumprimentar.

— Bom dia, filho, sente-se — disse ela, enquanto dispersava os talheres na mesa de madeira no centro da sala.

— Bom diuahh... — respondi, bocejando.

Sentei-me à mesa, mas antes que pudesse dar início a minha refeição, notei que ela estava me encarando com um grande sorriso orgulhoso.— Mãe…? O que houve?

Sem dizer uma só palavra, ela deu a volta na mesa e chegou atrás da minha cadeira. Em seguida, senti seus braços me envolvendo por cima de meus ombros enquanto repousava o rosto ao lado do meu.

— Feliz aniversário — Ela sussurrou em meu ouvido —, eu te amo.

Minha cara de surpresa lentamente desfez-se num sorriso. Pressionei meus braços contra os dela em meu peito e por um momento apenas fiquei ali, imóvel.

— Obrigado, mãe…

Em instantes aquela sensação acolhedora deu lugar a um calafrio na espinha, um sentimento de que alguém estava nos observando. Instintivamente olhei para a porta de entrada e lá estava meu pai, com a cara de ciúmes mais hilária da história.

— Oh, querido, você voltou rápido! — Ela me soltou e foi em sua direção.

Meu pai chegou com uma cesta de palha repleta de ingredientes nas mãos, deixou-a sobre a mesa, e veio até mim.

— Feliz aniversário, filho. Nem acredito que já completou onze anos… — Ele suspirou. — Na verdade, você já deve ter onze há alguns dias, mas…

— Pra mim, o dia do meu aniversário é hoje, pois foi quando vocês me deram um nome — afirmei.

Ambos se olharam e sorriram satisfeitos.

Meu nascimento… talvez esse fosse um dos mistérios para o qual eu nunca encontraria uma resposta. Fui largado nas margens de um rio ainda quando era um bebê, onze anos atrás. Mas antes que o frio do inverno pudesse me matar, ela me encontrou. Lilyan, meu anjo da guarda.

Quando era pequena, uma enfermidade a atingiu, fazendo-a perder a capacidade de gerar filhos, então eu sempre a ouvia falando que fui um presente enviado pelos deuses. E bom… eu pensava o mesmo sobre ela. Quanto ao Kurt, digamos que ele ficou surpreso de início. Minha mãe disse que seu rosto ficou pálido quando ouviu a proposta de me adotar, mas logo ele aceitou, à vista que também queria ser pai.

De volta à realidade, ele tirou do bolso uma pequena caixinha coberta por um lenço, entregou-a em minhas mãos e fez um sinal positivo com a cabeça, dando-me permissão para abri-la. Puxei a cordinha que prendia o lenço e ele se desembrulhou sozinho, revelando uma tampa de madeira com um símbolo esculpido nela. Era o brasão de Stardia, reino ao qual nossa vila pertencia.

Quando tirei a tampa da caixinha e vi o que tinha dentro, meus olhos se encheram. Nela havia uma pequena insígnia de ferro no formato de duas asas abertas, um pouco maior que a palma da minha mão.

— Isso... isso é...?! — perguntei, sem crer no que via.

— Sim, uma insígnia da Guarda Real.

— Mas... como?!

Meu pequeno choque não foi à toa. Aquela insígnia era um símbolo de reconhecimento, um presente enviado para pouquíssimas crianças do reino. Na verdade, apenas aquelas que apresentavam algum "talento natural" tinham a chance de recebê-la.

Esse talento traduzia-se numa proficiência incrivelmente acima da média no uso de armas, magia ou até mesmo força. Geralmente isso indicava que aquela criança era um prodígio e poderia se tornar um mestre em alguma dessas artes no futuro.

Somente com uma insígnia daquela era possível ingressar na Academia Real de Stardia, local que treinava esses prodígios com o intuito de capacitá-los para se tornarem parte da divisão especial do exército do reino conhecida como Guarda Real. Os soldados mais poderosos de toda Stardia estavam lá, incluindo os lendários Cavaleiros Reais, guerreiros que alcançaram o domínio máximo em alguma das artes de combate.

— Dizem que um cavaleiro real é mil vezes mais forte que um soldado comum, isso não é incrível? — disse ele, esboçando um sorriso suspeito.

Fiquei tão maravilhado com aquilo que quase não notei a estranheza da situação, afinal... eu não tinha talento algum. Bastou-me olhar para seu rosto que ficou evidente sua tentativa de omitir algo de mim.

— Pai... é muito raro uma criança de fora da Capital receber uma insígnia, e, além disso, minha esgrima tá longe de ser boa, então por que a Guarda enviaria isso pra mim?

Mesmo querendo acreditar naquilo, eu sabia que algo estava errado. Meu desapontamento ficou evidente no mesmo instante, e o silêncio que se seguiu me deixou ainda mais angustiado.

Percebendo aquilo, ele levou a mão até minha cabeça e acariciou-a enquanto sorria.

— Você realmente é um garoto astuto. Bom, não acho que adiantaria esconder isso de qualquer forma... Essa insígnia que está em suas mãos originalmente não foi criada pra você, Kay. Porém, não pense que só por isso não a merece. Afinal, você estaria insultando o cavaleiro que a enviou.

— Eh… EH?! Um cavaleiro real enviou isso pra mim?!

— Sim. Seu nome é Myrus, um velho amigo de infância. Fazia anos que eu não o via, mas acabamos nos encontrando em minha última viagem para Capital.

Às vezes eu esquecia que meu pai nasceu na grande Capital, o coração de Stardia. Eu ficava imaginando como deveria ser crescer em um lugar como aquele, cercado de guerreiros poderosos, vivendo bem ao lado do castelo real… parecia um sonho para mim!

— Você realmente é amigo de um deles?! — perguntei, enquanto meus olhos cintilavam, maravilhados, em sua direção.

— Pff… hahaha! — Ele franziu a testa e começou a rir com a mão na barriga. — Por que você sempre fica tão animado quando falamos sobre os cavaleiros? Apesar de poderosos, eles ainda são pessoas, assim como nós, sabia?

— Ei, pare de rir! Você sabe que meu sonho é ser um deles. Só não entendi ainda por que esse tal de Myrus me daria uma insígnia… você mesmo disse que não foi feita pra mim. — Eu a segurava enquanto meu semblante confuso refletia em sua superfície fria e polida.

— Sei o que está pensando agora, filho, mas talento não é tudo que existe. Se quer realmente saber por que recebeu ela, pergunte ao próprio Myrus. Afinal, agora você pode ir até a Capital fazer isso pessoalmente.

Naquele momento, minhas pupilas se dilataram, e eu abri um sorriso que ia de orelha a orelha. Aquele pequeno pedaço de metal era tudo que eu precisava para realizar meu maior sonho, e finalmente havia um em minhas mãos.

Antes que eu pudesse falar qualquer coisa, notei pelo canto dos olhos minha mãe tirando algo de seu pescoço. Me virei para ela, curioso, e percebi sua mão estendendo-se até mim. Nela estava um fino colar negro com um pingente em espiral na ponta, e dentro do pingente, uma pequena joia azul.

— Aqui, Kay, esse é meu presente. Este colar estava com você quando te encontrei, mas era muito grande para um bebê usar, então decidi guardá-lo até que tivesse uma idade adequada. Quero que o leve com você quando for para Capital.

Eu gentilmente o peguei de suas mãos. O colar era muito bonito e a joia na ponta refletia meu rosto e vários tons de azul.

— Mãe, pai... obrigado. Prometo que vou orgulhar vocês! — Abracei ambos ao mesmo tempo.

Após aquela pequena confraternização, terminamos o café e eu parti para meus afazeres. Na vila Nimbus, todos levavam uma vida bem rústica, então todo dia pela manhã eu saía para buscar lenha em um bosque que ficava numa grande elevação próxima ao fim da vila. Enquanto isso, meu pai ficava em casa moldando peças cerâmicas para assar e vender.

Andando pelo caminho, eu refletia sobre o que minha mãe havia dito.

Esse colar... ela nunca me falou sobre ele antes. Por que alguém deixaria algo tão valioso com uma criança que acabou de abandonar...?

Talvez eu devesse perguntar aquilo quando retornasse para casa, mas antes de decidir se faria isso ou não, meus pensamentos foram interrompidos por uma pancada forte em minha cabeça. Eu me desequilibrei com o impacto e caí sentado no chão.

— Ai, ai, ai! Mas quem foi o...

Olhei para trás e avistei o autor daquele ataque covarde. Seu cabelo, assim como seus olhos, vermelhos como os de um goblin raivoso, contrastavam com sua expressão simpática e sorridente.

— Kayon Lenard, distraído como sempre — disse ele, enquanto andava em minha direção girando um balde de madeira no dedo, um idêntico ao que acabara de arremessar contra minha nuca.

— Blake, idiota como sempre... — retruquei.

Enquanto eu levantava, ele aproximou-se de mim.

— Foi mal, Kay. Chamei seu nome três vezes, mas você tava perdido em pensamentos, não tive outra escolha... — Ele recolheu meu machado do chão e entregou-o em minhas mãos.

— Que tal da próxima vez tentar me alcançar usando as pernas ao invés de um balde? — respondi, irritado, enquanto decidia se acertava ou não a cabeça dele com o machado.

Ele deu uma gargalhada e em seguida me acompanhou na caminhada.

Blake era um de meus poucos amigos. Na verdade, era o único que eu realmente podia chamar de "amigo". Não existiam muitas crianças na vila, e a maioria delas me achava estranho por conta da cor incomum de meu cabelo.

Talvez ele não tenha hesitado em se tornar meu amigo por entender como eu me sentia. Afinal, além de mim, ele e seus pais eram os únicos "estrangeiros com cabelo esquisito" de lá.

— Sua mãe tá melhor, Blake?

— Ela... — Sua expressão feliz deu lugar a um semblante triste e distante. — Ela tá bem, no geral, mas ultimamente tem sido mais difícil de conversarmos…

— Ah! Desculpa, eu esqueci que…

— Relaxa, tá tudo bem. Mas e você, o que anda fazendo além de cortar lenha por aí? — Ele deu um soquinho em meu ombro, tentando melhorar o clima da conversa.

— Ando treinando bastante a minha esgrima lá no rio. Fora isso, não faço muita coisa... hehe.

— Você não tem jeito mesmo, né? — Ele fechou a cara e baixou as sobrancelhas, como se já esperasse por aquela resposta. — Só pensa em se tornar um cavaleiro… Mas, mesmo que fosse um prodígio, como exatamente você planeja conseguir uma daquelas insígnias?

Naquele momento eu parei de antar, soltei um sorriso provocador em sua direção, e logo em seguida contei sobre a insígnia que havia recebido mais cedo.

— HÃ?! Não brinca, cê tá falando sério mesmo?! — Acenei repetidamente com a cabeça, enquanto meus olhos brilhavam como os de um gato em sua direção. — Você realmente é um cara sortudo, eu te invejo um pouco... — Ele sorriu e voltou o olhar para o céu azulado.

— Mas você também pode conseguir uma! Não é como se eu fosse melhor que você empunhando uma espada...

Graças ao trabalho de seu pai, Blake teve contato com armas desde pequeno. Acho que por isso era tão habilidoso, eu nunca conseguia vencê-lo em nenhum de nossos duelos.

— Na verdade, não. Mesmo que eu ganhasse uma, ainda precisaria ficar aqui, cê sabe...

Ouvir aquilo me deixava um pouco triste, mas ele estava cuidando de alguém importante pra si, e isso é o que um cavaleiro de verdade faria. Eu lhe dei um sorriso de aprovação e continuamos andando em silêncio até o fim da vila.

Próximos à saída, Blake foi em direção a uma casa um pouco diferente das demais, com um grande portão de madeira aberto e um vão em seu interior. De longe pude observar a fornalha em brasas e as paredes repletas de ferramentas e armas penduradas. Mais ao fundo havia também uma bigorna onde um homem estava trabalhando. Ele batia incessantemente sua marreta num longo pedaço de metal incandescente.

Antes de entrar, Blake virou-se para mim.

— Ah! Eu já ia esquecendo, feliz aniversário, cavaleiro real, até mais!

Acenamos um para o outro e eu continuei minha caminhada até o bosque. Aquele era meu lugar favorito da vila. Conforme me aproximava dele, eu já sentia o entorpecente cheiro da relva molhada, resultado do sereno na noite anterior.

Chegando lá, passei por alguns arbustos e de repente já estava sob o manto das árvores que cobriam todo o bosque. Os raios de sol que faziam caminho por aquele emaranhado quase impenetrável traziam um ar místico para o lugar. Inspirei profundamente, tentando puxar o máximo que podia daquele ar perfumado para dentro de meus pulmões, e então iniciei meu trabalho de pegar lenha, enquanto as horas iam se passando.

Assim que terminei, amarrei o feixe de lenha com alguns pedaços de corda, escorei meu machado nele, e saí em direção ao meio do bosque. Lá tinha um grande carvalho que eu sempre escalava antes de voltar para casa. Ele era a maior árvore de lá, seus longos galhos estendiam-se muito acima da copa das demais.

Quando cheguei no topo, senti a fria brisa do vento que pairava sobre o mar verde de folhas ao meu redor. Muito distante, na linha do horizonte, avistei a Capital, uma longa extensão de terra cercada por uma muralha quase impenetrável. Acima dela ainda era possível observar o topo de quatro grandes torres que se ligavam a uma imensa estrutura no centro, o castelo real.

— Vai ser uma longa viagem até lá... — devaneei, enquanto o vento forte bagunçava meu cabelo.

Eu estava prestes a descer, quando ouvi o bater de asas de uma revoada de pássaros bem atrás de mim. Quando me virei, notei uma nuvem de poeira erguendo-se ao longe, na direção oposta à vila. Não consegui identificar o que era por conta da distância, mas aquilo vinha da Cordilheira Argen, um gigantesco agrupamento de montanhas que servia como fronteira entre Stardia e um dos reinos vizinhos, Andrall.

— Mas o que é aqui- — repentinamente, senti uma forte pontada no peito. — Ghh!

A dor veio seguida de uma palpitação muito forte, minha respiração ficou desregulada e eu comecei a ofegar na hora. Por pouco não desequilibrei e caí do galho que estava. Consegui me apoiar no tronco do carvalho com uma mão enquanto instintivamente levei a outra sobre o peito. O colar que recebi mais cedo foi o motivo daquilo. Ele estava brilhando e emitindo um estranho pulso de energia do seu interior.

Diante de meus olhos, tudo começou a desfazer-se e perder a cor, até restar apenas um limbo negro. Duas vozes abafadas começaram a ecoar em meu entorno, elas pareciam estar discutindo, mas eu não conseguia compreendê-las. Contudo, eu podia sentir seu ódio, sua angústia. Era… desesperador.

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