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Capítulo 2 — Servo

­Gérion prendia seu chicote na cintura quando percebeu, enfim, que a luz que iluminava seu rosto já não vinha mais da tocha na porta da cela.

Ele olha para a janela no teto da cela com seu sorriso amarelo de sempre e então se vira para trás.

Hermes estava jogado no chão em uma postura encolhida contra a parede. E agora, para além dos ferimentos da tarde anterior, tinha também em sua cabeça a marca da violência que sofrera.

Já não tinha mais suas lindas mechas de cabelo branco que iam até o pescoço.

Seu couro cabeludo estava marcado. Cortes, esfoliações, pancadas. Marcas de resistência.

Infelizmente para ele, resistir não parece ter sido o suficiente.

Abaixo dele, um rio de sangue.

Alguns tufos de seu cabelo nadam sobre as poças de seu sofrimento enquanto outros se misturam com a sujeira do chão da cela.

Ele não responde.

Se sente sujo.

Tão sujo quanto o chão desta cela.

Não. Até mais.

Teve sua divindade violada, sua essência contaminada.

Como poderia ser ainda considerado um deus?

Gérion sorri ainda mais amplamente atestando a submissão do rapaz.

A visão à sua frente o dizia que finalmente havia colocado o escravo em seu devido lugar.

— Levantem-no, e levem-no para baixo. — Disse Gérion a seus homens que passaram a noite fora da cela apenas escutando o ogro "educar" seu servo. — Não o deixem descansar.

Os guardas entram na cela ao passo que o gigante a deixa e correm para levantar o rapaz.

Hermes não resiste e se levanta com o apoio dos homens.

Seu olhar vazio não transmite a dor que estava sentindo.

Suas pernas falham e ele cambaleia, mesmo apoiado pelos braços em um dos guardas. Logo, outro guarda vem e o segura pelo outro braço, e eles saem arrastando Hermes para fora dali.

Eles descem uma rampa circular e Hermes, no cúmulo de sua fraqueza, consegue enxergar algumas pessoas com vestes sujas e rasgadas, todas com picaretas e minerando algo dentro dos túneis que ficam ao lado da rampa em que está descendo.

"Por que isto está acontecendo?"

Apesar de sua visão, tudo parece fugir de seus sentidos, e tudo no que consegue se concentrar é a dor que lhe foi infligida.

"O que fiz para merecer isto?"

Chegando ao fundo do poço, os guardas finalmente o largam.

O rapaz cai de cara no chão, em meio à poeira e aos outros escravos que já haviam começado a trabalhar.

Sua face ainda vazia de expressões se concentra no nada. Logo, uma picareta cai em sua frente, ao lado de seu rosto.

— Sem moleza aqui vagabundo. — Um dos guardas grasna para ele com os dentes cerrados e desprezo no olhar.

Hermes encara a picareta com um olhar desesperançoso, e não se move.

— Não quer trabalhar hum? — O guarda fala com presunção, e caça o chicote em sua cintura.

Ele ergue o braço.

Mas é parado por uma mão que segura seu pulso antes que ele golpeie o rapaz.

Ele se vira, irritado.

— Meu senhor, permita-me ajuda-lo. — Fala num tom sereno um homem barbudo de aparência experiente sem camisa e com uma calça surrada.

O guarda faz gesto de reclamar, mas é interrompido novamente pela fala do homem.

— Sabes que não podemos perder mão de obra, meu senhor, estou errado? — Ele diz com sua expressão tranquila. — Ficaria feliz o senhor Gérion em saber que um servo recém adquirido já não é mais útil?

O guarda abre a boca para retrucar, mas pensa melhor ao ser relembrado da figura de seu superior.

Ele puxa seu braço com força, se livrando do aperto do homem.

O guarda coloca seu chicote novamente em sua cintura enquanto amacia o pulso com uma expressão disfarçada de dor, provavelmente por conta do aperto do homem.

— Leve este imundo daqui, e ponha-o para trabalhar o quanto antes! — Diz apontando para o rapaz no chão. — Se o vir vadiando, apanharão os dois! — Ele avisa em um tom raivoso, como um cão, com o dedo na cara do homem numa pose ameaçadora.

Não há reação por parte deste.

Seu olhar não vacila nem por um momento.

Não há nada em seu rosto. Nem raiva, nem medo, nem tensão.

Ele está tranquilo

O guarda estala a língua com um rosto irritado, e então se põe em outra direção deixando os dois para trás.

O servo o encara se afastando, e então se aproxima de Hermes no chão.

— Levanta-te jovem. — Diz o homem se agachando ao lado do rapaz. — O chão não é lugar para alguém em teu estado.

Ele segura Hermes pela axila, e então com certo esforço o ajuda a se levantar.

Ele pega consigo a picareta que havia sido designada ao rapaz, a carregando junto a ele.

Hermes sente sua consciência se esvair quando é levantado. Seu corpo e mente estavam exaustos.

Sua visão se escurece, e sua última visão é a de alguém encapuzado se aproximando de maneira apressada.

— Ele está bem? — Pergunta uma voz feminina preocupada.

..............

Hermes abriu os olhos.

Para a sua surpresa, não estava mais no lugar de agora a pouco. As paredes de pedra, o ogro, nada.

Se viu numa floresta escura, fria e úmida.

Estava com suas roupas de sempre. Não aquelas sujas e surradas, mas sim as suas vestes divinas.

O caduceu estava preso à sua cintura.

As árvores à sua volta se serpenteavam entre si, criando e tapando caminhos um depois do outro.

Olhar em volta revelava um labirinto de árvores.

Olhou para o céu e viu nada além da noite.

As estrelas reluziam.

Apesar da tranquilidade e do silêncio, exceto pelos sons das cigarras, Hermes sentiu-se inquieto. Seu coração palpitava mais rápido do que o normal.

Resolveu andar, sair daquele lugar.

Tentou pular e voar, usando suas habilidades divinas. Falhou.

As asas em suas sandálias pareciam teimosas demais para tal.

Sentiu um incômodo incessante. Seu coração não destoava de sua mente na inquietação.

Olhou em volta mais uma vez, e viu a mesma coisa que antes.

Entretanto, atrás dele, as árvores pareciam se entrelaçar. Era como um aviso da natureza.

'Sem volta.'

Decidiu caminhar pelo chão, e seguiu fazendo seu caminho entre as árvores em sua frente que ainda permitiam a sua passagem.

Após algum tempo nisso, percebeu que não chegava a lugar nenhum. Pelo contrário, as árvores à sua frente pareciam fechar seus caminhos cada vez mais.

Passou a ouvir dentro da floresta alguns sons estranhos.

Sussurros, sons animais.

Sentiu seu coração acelerar, sua mente trabalhava para tentar entender toda a cena que estava acontecendo.

De repente, sentiu uma pontada no peito. Levou a mão até lá, passando-a por baixo do vão de seu Quitón. Sentiu uma cicatriz naquele local. Uma marca em um formato estranho.

*CLACK* *VUUSH*

De repente, escutou às suas costas o barulho de um estalo monstruoso, seguido de algo cortando o ar.

Seu peito bateu mais rápido que nunca.

Virou-se assustado.

O medo o tomou.

Avistou um raio, partindo os céus, consumindo as estrelas que cruzavam o seu caminho, e o pior, vindo em sua direção.

Deu passos para trás, com uma expressão assustada, e ao mesmo tempo sem conseguir entender.

*VUUUUUSH*

Viu aquela flecha de luz e eletricidade romper o céu e tudo em seu caminho, o buscando.

Se virou e correu, com todas as suas forças, driblando seu caminho por entre as árvores.

Sentiu sua cabeça esquentar. Seu peito doer com a intensidade das batidas de seu coração que se aparentavam a socos.

Não conseguiu correr como sempre o fez. Sentiu que sua velocidade não estava lá, e toda vez que a buscava, sentia seu peito doer ainda mais.

A dor vinha da marca.

O barulho atrás dele só se intensificava e aproximava.

No alto de seu desespero ele tentou gritar. Clamar pela ajuda de seu pai.

Sua voz não saiu.

Sentiu então algo escorrer de seu peito. Algo viscoso.

Olhou para baixo e viu uma mancha vermelha em seu Quitón na altura do mamilo.

No meio de sua corrida, mais uma vez levou a mão ao local da marca. Estava molhada. Algo como ferro, mas mais sujo.

Sentiu suas forças que já não eram as mesmas vacilarem.

Sua corrida estava perdendo velocidade.

Puxou a mão do peito. Viu seu sangue, mas não era dourado como sempre. Estava negro. Grosso. Sujo.

Percebeu, então, a ausência de sua natureza divina.

Ofegante, teve que diminuir a corrida, e foi parando com o tempo, até parar por completo se apoiando numa árvore.

Diferente dele, o som do raio apenas aumentava em velocidade e proximidade.

Fechou os olhos com a dor em seu peito que havia se tornado insuportável.

*VUUUSH* *CLACK* *TLACK*

Escutou, por fim, o som da floresta cedendo, abrindo espaço para a passagem de seu algoz.

Um clarão se revelou para ele, mesmo com os olhos fechados. Ele rangeu os dentes. A dor só piorou.

..............

*Click* *Tec*

Hermes recobra sua consciência com o estalar de uma crepitação e o sentimento de alguém passando a mão em sua cabeça.

Ele pula apoiando as mãos no pano que estava abaixo dele, e então se desequilibra, sentindo o balanço daquilo em que ele havia se apoiado.

*BLAM*

Despencou dali, poucos centímetros do chão.

Então, sente a dor da batida de sua cabeça no chão e se levanta rapidamente, ainda em estado de alerta.

Encontra, para sua surpresa, uma garota sentada no chão ao lado de uma rede. Alguém que já havia visto antes. Tudo parece escuro, a noite parece ter chegado, mas ele a reconhece mesmo assim.

Seus cabelos amarrados na altura do pescoço parecem mais escuros do que aquele castanho de que Hermes se lembrava. Seu rosto fino e delicado somava ao ar de inocência que essa garota tinha, passando uma certa ingenuidade, própria da juventude que essa menina parecia ter.

No colo de seu, agora sujo, vestido azul escuro está um pano encardido com algo vermelho.

Ela o encara com dúvida e certo medo.

— Gulp- Que-quem é- — Hermes engole em seco enquanto encara a garota com um rosto tenso.

— Á-Ágatha! — Ela responde prontamente olhando-o de volta com certa dúvida.

— Ajude-o a levantar, pequena. — Pede uma voz masculina vinda de trás da garota em um tom calmo.

Hermes fica alerta novamente e se afasta em direção à parede daquilo que parece ser uma caverna.

Ele se choca contra a parede e sente, novamente, uma pontada em seu tórax. A dor de sua costela quebrada. Ele leva a mão à região com uma expressão de dor.

— Kuhk- — Ele geme, rangendo os dentes com uma dor excruciante.

— Acalma-te rapaz — Diz o homem se levantando atrás da garota. — Sou servo como tu, não tens do que temer. — Ele afirma, ainda parado, com sua expressão calma.

Hermes o encara, respirando um tanto profusamente por conta da dor.

Ainda sente certa desconfiança quanto ao homem.

Ele analisa o local em que se encontra.

Uma espécie de caverna, provavelmente de uma mina. Nas paredes algumas poucas vigas de madeira para a sustentação deste túnel. Ao lado da garota que se encontrava ainda sentada no chão estavam redes.

Hermes percebe que era aonde estava repousando todo este tempo. Olhando para as mãos da garota, sujas de sangue, e suas roupas também. E o pano que ela carregava, encardido com algo vermelho, mas parecia ser originalmente branco, ou de alguma cor clara. Ela estava toda marcada com seu sangue.

Olhando para baixo, percebeu que seu tronco estava todo enfaixado com panos finos. Só então percebeu que não sentia ardência nenhuma nas costas, os ferimentos secos pareciam já ter sido tratados.

"Eles cuidaram de mim..." Hermes finalmente percebe.

Ainda assim, sente certa desconfiança em relação aos dois em sua frente. Não consegue se livrar dela. Depois do que acabara de passar...

O rapaz tenta se levantar sozinho, mas um movimento brusco o faz forçar um pouco a costela quebrada, e o leva ao chão novamente, acompanhado por um gemido de dor.

Ágatha esboça certa preocupação, e então se levanta rapidamente, andando na direção de Hermes para ajudá-lo.

Ela tenta ajuda-lo a se levantar, e sem querer toca o cotovelo na cabeça do rapaz.

Hermes sente uma queimação profunda percorrer todo o seu couro cabeludo, como se ele estivesse tentando se desgrudar de sua cabeça, como se fosse arrancado à força.

— SAIA- — Hermes grita e empurra o braço da garota rudemente.

Ágatha recolhe sua mão com um rosto preocupado, e então abre a boca levemente para falar algo para Hermes. Entretanto, com uma expressão pesarosa, ela decide não falar nada e volta para se sentar ao pé da fogueira, ao lado do homem de antes.

Hermes os encara com sua respiração pesada, seus sentidos confusos. Não entende porque foi tão agressivo. Seu corpo simplesmente reagiu antes que sua mente sequer pensasse.

O simples toque dela em seu couro cabeludo o fez sentir uma agonia indescritível. Desespero.

O homem encarou Hermes de cima, ainda sem se desfazer de sua expressão serena habitual.

— Dê-lhe tempo. — Disse ele para a garota atrás dele. — Já cuidamos de seu corpo, agora ele precisa de paz para cuidar da própria mente. — Ele fala olhando para Hermes enquanto segura um pano molhado em mãos.

O homem se aproxima um pouco, e deixa o pano na rede em que Hermes estava deitado antes. E então, ele volta e se senta no chão ao lado de uma fogueira percebida por Hermes apenas agora.

O silêncio toma conta da caverna por alguns segundos.

A garota encara Hermes com certa dúvida, e parece abrir a boca para falar algo, mas acaba não o fazendo. No lugar, ela simplesmente se recosta na parede do túnel e descansa observando o trepidar das chamas da fogueira.

...

Com o passar de alguns minutos, Hermes se acalma, e a dor em seu tórax passa, e ele decide se levantar, mais uma vez.

Desta vez, se apoiando na parede, ele consegue sem muitos esforços, e com cuidado evita que sua costela o machuque ainda mais.

Ele caminha apoiado na parede e segue até a rede em que estava antes.

Pegando o pano que estava ali, ele se deita cautelosamente na rede e coloca o pano sobre a testa, vítima de inúmeras pancadas na noite anterior.

Em meio à dor, Hermes encarava os dois em volta da fogueira. O homem repousa sentado ao lado do fogo com os olhos fechados.

"O que ele está fazendo?" Pensou Hermes franzindo a sobrancelha em um rosto confuso.

— Ele está meditando. — Revelou a garota como se soubesse exatamente o que o rapaz estava pensando enquanto olhava para o homem sentado.

Ele encarou a garota, e então virou para o homem de novo, ainda confuso.

Logo, suspirou percebendo a inutilidade em tentar compreender manias mortais e resolveu se reter aos questionamentos realmente importantes.

— Onde estamos?

A garota passa um tempo em silêncio, olhando a chama em sua frente.

Ela abre a boca por um momento, mas volta a fechá-la. Claramente tem tanto conhecimento quanto Hermes acerca da situação em que se encontra.

"Ela chegou comigo, afinal." Ele pensa, constatando o óbvio.

— Estamos ao norte da Tessália. — Afirma o homem, ainda de olhos fechados. — Mais precisamente em Calcídicie.

Hermes franziu a sobrancelha.

"Na península?" Se perguntou. "Como vim parar aqui?"

Ele olha para a chama, ponderando.

E então, enquanto tenta entender, se lembrar, uma dor aparece em seu peito. A mesma de seu sonho.

Ele grunhe um pouco levando a mão à região enfaixada.

Sentiu, passando a ponta dos dedos por entre os vãos dos panos, a cicatriz no centro de seu peitoral. A marca.

Engoliu em seco.

O que isso queria dizer?

Quando ele foi marcado? E por quem? E por quê?

A dor perfurava seu peito mais à medida que ele tentava entender tudo aquilo.

Quando a dor se tornou insuportável ele parou.

Respirando inquietamente, ele se virou para os dois novamente.

O homem ainda 'meditava' e a garota encarava Hermes com dúvida e preocupação.

— Huff- Como vieram parar aqui? — Hermes perguntou, engasgando um pouco nas palavras devido à dor que ainda se esvaia lentamente em seu peito.

A garota pensou um pouco, o homem nem se moveu.

— Eu sou de Corínto... — Ágatha revela com um olhar pesaroso. — Papai acabou devendo dinheiro para as pessoas erradas... — Ela fala encarando a fogueira com uma expressão distante. — Eu e meu irmão acabamos tendo que pagar por isso... — A garota engole em engole em seco e sua boca se curva levemente, como se se forçasse a permanecer fechada.

Hermes percebe no rosto da garota uma tentativa falha segurar um choro há muito tempo guardado.

Uma única lágrima escapa, lavando suas bochechas, mas ela logo a enxuga com o vestido e se vira um pouco para a saída da caverna.

Hermes encara sem reação.

A sensação vívida de ter experimentado na própria pele a violência e barbaridade dos mortais o fez pensar sobre como aquela garota era frágil. Sua mente o fazia pensar que ele era quem havia passado pelo pior, e que ela estava chorando e sofrendo tanto por um motivo pequeno. Não percebia ele, no entanto, a maldade em seu raciocínio.

Apesar disso, Hermes ainda sentia certo compadecimento para com a menina, muito por conta de seu semblante jovem e inocente. Certamente desconhecia o verdadeiro sofrimento que este mundo era capaz de proporcionar, e ele torcia para que continuasse sem conhecer, visto como o pouco pelo que passou já foi capaz de deixá-la em tal estado.

Hermes suspirou encarando Ágatha enquanto ela lamuriava encarando o lado de fora.

— E você, homem? — Perguntou ao homem que nem por um momento vacilou de sua posição.

Por alguns segundos ele não respondeu, permitindo que o silêncio tomasse conta do ambiente, o que deixou Hermes um pouco irritado. E então, ele respirou profundamente, abrindo os olhos em direção à fogueira.

— Atenas. — Ele fala calmamente. — Nasci na casa de um Eupátrida, fruto da infidelidade e do abuso de um patrão com sua serva. Minha mãe adoeceu pouco depois de eu nascer, e foi abandonada para morrer. — Segue encarando a fogueira. — Sirvo desde então. Fui educado para ser capaz de auxiliar meus patronos em tarefas. Quando meu progenitor morreu, fui vendido para o local mais longínquo para o qual conseguiram encontrar um mercante de escravos. Minha patroa tinha medo que eu exigisse algum direito sobre suas posses, mas não podia me matar por conta das leis.

Ágatha estava agora ouvindo ele atentamente, parecia saber tanto quanto Hermes sobre o passado do homem, e estava chocada com a tranquilidade com a qual este contava sua história.

Hermes ouvia tudo atentamente. Ainda que não sentisse pena do homem, se sentia incomodado com o tom impessoal no qual ele contava tal história. Era como se ele nem se importasse com nada do que estava falando.

— Servi em algumas casas ao passar dos anos, mas sempre acabava vendido. Ao fim, acabei aqui, aonde fazem vinte anos desde que cheguei. Nasci servo, morrerei servo.

"Vinte anos!?" Hermes se pergunta surpreso.

Ele conhecia bem a expectativa de vida de um escravo que trabalhava em minas e certamente não era comum que durassem tanto tempo nas condições em que estavam.

— E se me permite, chamo-me Sêneca, e não homem. — Ele revela, se virando para encarar Hermes com seu olhar sereno.

Hermes o encarou de volta, tentando ler algo em sua expressão, mas nada conseguiu.

Após um suspiro, o rapaz encara o lado de fora da caverna, percebendo nada além de mais túneis e paredes da mina.

— Sou Hermes. — Revela com um tom distante, como se mesmo ele duvidasse dessa informação neste momento.

— Como o deus? — Ágatha levanta as sobrancelhas com curiosidade.

Hermes abre um pouco a boca, querendo afirmar que era o próprio, mas desiste.

Hermes olha para o chão com uma expressão distante, e se recosta na rede.

— Sim. Como o deus. — Ele diz num tom misto de desânimo e tristeza.

Sêneca ergueu um pouco a sobrancelha franzindo o cenho, abandonando por um momento a sua expressão vazia. Mas logo retorna ao seu estado normal.

— Uau- Eu sou uma seguidora de Hermes! — Ágatha afirma em um tom surpreso e animado com as mãos à frente do peito. — Veja!

Ela desce um pouco da gola do vestido para seu ombro direito e revela, na região do trapézio, uma tatuagem pequena de uma sandália com pequenas asas.

Ágatha sorri para Hermes.

Ele encara a garota com a sobrancelha levantada em um olhar um tanto surpreso. Tinha certeza de que pouquíssimas pessoas ainda criam em deuses na Grécia atualmente.

Pensa por um momento, associando aquilo à perceptível ingenuidade da garota.

No canto de sua boca surge um sorriso, junto a algumas doces lembranças ancestrais.

Seguidores...

Há quanto tempo já não os tinha.

Ponderou encarando o teto da caverna.

— Já passa da hora. — Sêneca diz se levantando. — Pare de importunar o rapaz, senhorita Ágatha. Ele tem trabalho a fazer amanhã. — Ele diz depois de passar por ela em direção a uma das redes próximas a Hermes.

— Certo- Desculpe... — Ela diz em um tom um pouco arrependido se levantando um pouco apressada.

Ágatha e Sêneca se deitam cada um em sua rede, e mais uma vez o silêncio toma conta da caverna.

— Obrigado por me tratarem. — Hermes num tom baixo, quase inaudível se não fosse pela quietude e silêncio noturnos.

Ágatha tem um sorriso meigo no rosto.

Hermes ainda se sentia vazio, mas encontrar um de seus seguidores o fez recuperar um pouco as rédeas de sua própria mente.

Ao mesmo tempo, o fez querer pensar de novo sobre o que o havia levado até ali.

Como tudo havia chegado naquele ponto.

Por que estava sofrendo tanto.

Os Deuses não o estavam vendo?

— Humpf- — Suspirou em um enorme cansaço.

Antes que sua marca começasse a doer, afastou suas ponderações e se virou para a parede fechando os olhos.

Buscou se aconchegar na rede o máximo seu corpo surrado permitia.

A única certeza que tinha neste momento era que precisava dormir.