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Dia 31 de Fevereiro de 047 - Pós Hecatombe.

Na Mente dos Grandes.

"Os humanos sempre foram prepotentes em relação a seu significado, diante dos olhos de outros seres eles nunca passaram de um capricho. Suas vidas, suas dores, seus objetivos e prazeres são apenas para suprir o tédio de algo acima?"

A voz ecoava em uma sala relativamente grande, tudo estava escuro, mas eu podia ouvir nitidamente cada palavra.

"Hoje, eu lhes apresento uma teoria sobre a real causa de tudo isso, desde nossa força, os demônios, ou porque nós em específico não envelhecemos, hoje quero dizer que podemos acabar com isso."

Finalmente levantei meu rosto que estava em uma mesa que se assemelhava a uma pedra negra polida com detalhes dourados em seus adornos.

Prendi minha visão em um homem corpulento e de feições sombrias. Sua pele era parda, seus cabelos lisos, com algumas mechas douradas, e seus olhos verdes brilhavam com uma luz doentia.

A luz do meu assento estava apagada. Nesse salão oval escuro, havia outros 16 assentos organizados de forma circular, todos apagados, exceto o de Fernando, que permanecia aceso enquanto ele discursava.

"Eu vejo que muitos de vocês podem ser céticos em relação a isso, mas hoje literalmente dobramos o espaço com nossos punhos, então escutem a mim dessa vez, me deem sua atenção e força para podermos ir além dos muros de nossas respectivas cidades! Para tomarmos nosso mundo de volta! Me dêem sua fé!"

Fernando gesticulava e falava um idioma estranho, semelhante ao Hebraico. Desde o início, quando nos conhecemos e recebemos nossos poderes, sabíamos instintivamente falar essa língua. Apenas nós mesmos nos entendíamos, exceto um.

"Aliás, ele não está aqui hoje. Onde será que está Narciso?" Pensei comigo mesmo.

Fernando continuou, seu tom de voz firme e sem vacilações. Há 47 anos, ele veio de uma nação do Sul da América, mas já estava entre a elite mundial antes disso. Ele comentou que teve a sorte de receber implantes tecnológicos que se fundiram ao seu corpo após receber seus poderes, o que o tornava superior em habilidades de fala e estratégia em relação a nós.

Até mesmo entre nós, ele se destacava. Era astuto e ardiloso, e eu não conseguia confiar nele.

Nesse momento, uma luz se acendeu em outro assento, revelando um homem na faixa dos 60 anos, músculoso e corpulento. Sua barba cheia tinha um aspecto selvagem, e suas vestes eram pesadas e pretas, com detalhes dourados. Sua voz soou ríspida quando ele falou.

"Bobagem! Os tomos antigos foram queimados, suas divagações há décadas nos levam a falsas pistas! Eu não me importo com a origem ou com divagações filosóficas do tipo. Para onde vamos e para onde iremos! Foda-se a sua teologia, demônios simplesmente serão esmagados se vierem até nossas muralhas."

Fernando o olhou com desprezo, mantendo um aspecto nobre e irônico em sua resposta.

"Bobagem? Como pode dizer isso se você não abre a política de intercâmbio cultural da sua zona, Russo? Logo alguém que mantém as políticas internacionais antigas obviamente deve se beneficiar dessa falta de liberdade que esse Hecatombe proporcionou."

Ao finalizar a frase, Fernando deu um sutil sorriso, parecendo sádico ao citar uma palavra que normalmente era tabu entre nós. Parecia ter colocado Borís contra a parede.

"Hecatombe, um termo maldito que as pessoas usaram quando o apocalipse começou e os demônios massacraram bilhões de pessoas. Os sobreviventes descreveram a forma como seus entes queridos foram sacrificados e massacrados como bois indo para o abate." Eu soltei um suspiro enquanto refletia sobre o peso que tudo isso trouxe a nós. Estava cansado.

O nome do idoso era Borís, alto e musculoso, com 6'3 pés de altura. Ele era russo, como Fernando havia mencionado, e após o desastre, ele criou uma cidade-estado e mantinha uma política que os isolava das relações com outras cidades ainda em pé.

Borís era autoritário demais e costumava entrar em embates com outros heróis, às vezes ameaçando-os de morte. Sinceramente, não sabia se conseguiria confrontá-lo com minhas capacidades físicas em seu máximo, e é justamente por causa dessa sua peculiaridade que ninguém se colocava contra ele após tanto tempo.

"Como você ousa, maldito? Não sou como os outros que dão ouvidos a você! Escute, rapaz, eu não acabei com você ainda porque no final somos dependentes um dos outros para manter a humanidade viva! Eu não pretendo viver em uma falsa confraternização e fingir que não há diferença entre nós! Mas..."

Ele fez uma pausa antes de aliviar seu tom de voz frio, mas ainda ríspido.

"Enquanto houver necessidade de um de nós para todos existirem, eu continuarei. E quando isso acabar, eu terei sua cabeça, e isso é uma promessa. Até lá, eu não sairei de minha cidade! Até lá, não darei ouvidos a alguém como você!"

Nesse instante, a luz se apagou e Borís desapareceu. Passei meu olhar por todos os assentos e finalmente pousei meus olhos em Fernando.

Encarei-o e pude ver seu ódio. Ele tampava o rosto com uma mão, como se estivesse pensando em algo, mas era nítido seu rancor. Nunca o entendi totalmente. Ele parecia uma ameaça, sempre beirando a linha entre a razão e a loucura. O mais assustador é que mesmo louco, ele saberia planejar, premeditar e executar tudo com perfeição.

Essa, infelizmente, era uma dinâmica comum entre os 17 que herdaram poderes equivalentes de um Deus vivo, mas ainda eram humanos no final.

Nossas mentes estavam ruindo e sucumbindo pouco a pouco. Alguns de nós tinham de 30 a 60 anos quando tudo começou, e agora nossas mentes mantinham corpos poderosos e responsabilidades. Mentes limitadas enfrentando experiências intensas que beiravam o centenário.

Porém, não fomos feitos para ser assim.

"Não há algo perfeito em nós para a perfeição habitar em nós." Esse era um lema que mantinha comigo desde o início.

Finalmente, levantei-me e saí daquele salão, pela abertura na parede atrás de meu assento.

No corredor estreito, caminhei, meus passos ecoando alto a cada passo. Cada passo era como um martelo atingindo minha têmpora, até que vi uma forte luz no final do caminho. Ao alcançá-la e abrir meus olhos, estava em um luxuoso quarto, em pose de meditação.

Aquilo era um mundo mental compartilhado que tínhamos juntos.

Levantei-me devagar e vesti a roupa que representava meu status naquele local. Era uma roupa branca, em um material sintético que se ajustava ao corpo. Por cima, coloquei um colete preto, com design modernista. Então, peguei o paletó branco e negro, com detalhes dourados, e fui até um grande espelho. Vi minha face, que não envelhecera nada durante esses 47 malditos anos.

"Quantos anos você teria agora, Iakami? Uns 65?"

Toquei meu rosto com uma expressão amarga e, em seguida, fui até a varanda e olhei para o mundo lá fora.

"Esta não é mais a terra que me lembro. O que será de nós?"

Ao olhar para cima, vi apenas nuvens negras, como fumaças de incêndios, com um brilho estranho de carmesim entre elas. E a lua... Ela era como um olho, observando nosso mundo todos os dias.

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