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Demon Cafe

Demon Cafe conta a história de Lívia, uma jovem que decide abrir um café que só funciona das seis da tarde às seis da manhã. O problema começa quando ela descobre que os seus clientes não são exatamente o que ela esperava.

Raul_Dullius · Urban
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15 Chs

Jantar Romântico

A percepção do indivíduo sobre a passagem do tempo. Isso sempre foi algo que me atraiu. Talvez porque a minha percepção sempre foi meio "invertida" em relação às outras pessoas. Meu dia começa quando o delas chega ao fim, o que me coloca em uma corrida eterna contra o tempo.

Mas isso só se tornou um problema quando eu me mudei para a capital. Na minha cidade natal, o tempo sempre pareceu se arrastar. E eu achei que me sentiria assim novamente ao voltar pra cá, e só o que consegui foi gerar uma espécie de paradoxo. Ao invés de voltar a fazer parte da lentidão, acabei acelerando o mundo ao meu redor.

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Já não entrava luz pela janela do quarto quando eu acordei. Levantei da cama, atravessei a casa e consegui sair pela varanda a tempo de pegar o pôr do sol. Acenei para Gabi e seu Clécio ao passar pela cozinha. Nos últimos dois dias, foi nesse horário que havíamos começado nossas sessões de treinamento. Mas agora já não havia mais nada a aprender, e em menos de 24 horas eu colocaria tudo aquilo à prova.

Um barulho me atraiu para os fundos da casa. Davi, com muito esforço, brandia um machado contra uma tora. Não pude deixar de notar que, mesmo exausto e encharcado de suor, seus golpes eram precisos.

— E aí, já tá pronto pra me contar o que está fazendo?

Davi parou de golpear. Se apoiou no cabo do machado, recuperando o fôlego, e se contentou a balançar a cabeça em negativa.

Nós não conversamos quase nada desde que chegamos ali. Ele havia me contado o básico do que estava planejando, e me dado uma data de quando deveríamos partir. Passava o dia todo nos fundos de casa ou na velha cocheira, e só entrava para tomar banho e dormir. Minha irmã achava que ele era só um amigo esquisito, já meu pai parecia instintivamente não ir com a cara dele. Eu meio que concordava com os dois.

Ele deixou o machado cair na grama e se aproximou. Andava de um jeito meio estranho, mexendo as mãos como se não soubesse muito bem o que fazer com elas.

— Então, eu tava pensando… Hoje é o nosso último dia aqui, e eu nunca fiz nada para te agradecer pela ajuda.

O quê?! Teria sido menos estranho para mim se um demônio tivesse se materializado em pleno ar.

— Você gosta de comida chinesa? — ele perguntou.

Então era por isso que ele estava todo sem jeito. Davi realmente não sabia como fazer aquele esquema de ser legal com as pessoas. Decidi não provocá-lo, para não pôr a tentativa em risco.

Um ruído de buzina veio lá da frente da casa.

— Opa, deve ser o motoboy! — disse ele.

— Pera, — não consegui segurar — você pediu a comida antes de saber se eu iria aceitar? Você é meio convencido, né.

— Nada a ver, — ele tateava os bolsos em busca da carteira — não sou convencido. Eu só pensei que não teria motivos para você não querer.

Um exemplo perfeito do que é ser convencido, pensei. Mas ei, comida de graça! Ele voltou depois de alguns minutos e me alcançou a sacolinha com os lanches. Depois, juntou do chão o machado e o pedaço de madeira no qual estava trabalhando, e foi arrastando eles em direção a cocheira. Parou no meio do caminho para me perguntar se eu não iria.

— Você não prefere jantar, tipo, na cozinha? Em uma mesa?

— Vem logo! — ele parecia até empolgado.

A cocheira não era um lugar que me trazia muitas memórias. Meus pais nunca criaram cavalos ali, nem algum outro tipo de animal. Fazia parte do sítio quando eles o haviam comprado, e desde então só passava por manutenção para não cair aos pedaços. Davi havia instalado um lampião em uma viga, mas fora isso, continuava a mesma coisa de sempre.

Ele sinalizou para que eu colocasse a sacolinha sobre uma espécie de mesa improvisada, um toco de madeira mais ou menos do tamanho de um torso humano. Toquinhos menores estavam posicionados ao seu redor, servindo de bancos.

— Ei, você decidiu tirar uns dias para um projeto de marcenaria?

Quando me aproximei da mesa, percebi que a madeira havia sido entalhada com símbolos. Lembrava um pouco aquele sigilo do Caçador que havia começado toda aquela confusão.

Nos sentamos um de frente para o outro. Nunca tinha provado comida daquele restaurante. Acho que quando fui embora da cidade, ele nem existia ainda. Estava ótima.

Tentei puxar conversa com Davi durante a refeição, mas ele só começou a falar de verdade depois de comer.

— Foi mal por ignorar as suas perguntas nos últimos dias. — Ele falava enquanto tentava caçar os últimos legumes de dentro da caixinha. — Ainda assim, achei que você teria bem mais dúvidas.

— Teu pai tá numa power trip, e a gente não pode deixar ele se tornar o rei dos demônios, ou algo assim. Acho que não sobra muito espaço pra dúvidas.

— É. Ou é isso, ou você tem algum motivo para não querer saber.

Eu não gosto quando as pessoas começam a se aprofundar na forma como eu lido com os problemas. Sim, existe um motivo para eu querer manter as coisas simples quando eu preciso lidar com elas. Eu preciso entrar em detalhes sobre eles com pessoas que eu mal conheço? Se você respondeu "não", acertou.

— Minha irmã deve sair para trabalhar em algumas horas. Preciso me despedir.

Agradeci pela janta e levantei. Davi me seguiu até a porta da velha cocheira.

— Pera aí — ele disse, e eu esperei.

O sítio da família era afastado, até mesmo para os padrões de uma cidade que era composta em grande parte por uma zona rural. Olhei para cima e agradeci em silêncio a qualquer deus que tivesse me dado aquela vista do céu noturno. Admirar aquele mar de estrelas que havia me acompanhado pela maior parte da vida deixou meu coração pesado por um instante.

Ele colou do meu lado.

— Se você não quiser falar sobre isso, beleza. Mas dá pra ver que tem algo te incomodando.

Eu queria falar sobre isso, só não sabia como colocar o que eu sentia em palavras. Sem tirar os olhos do céu, respondi.

— Eu sinto que, quanto menos eu souber, mais fácil será para mim fazer seja lá o que for preciso. Tenho medo de saber demais e isso me fazer desistir.

Davi tocou meu pulso de leve. Isso não me incomodou, pensei que ele estivesse tentando demonstrar algum tipo de empatia. Dava pra ver que ele estava se esforçando. E então aconteceu.

O aperto no meu pulso ficou mais firme. Ele tentou torcer meu braço enquanto me puxava para perto. Sua outra mão se ergueu, e senti algo gelado ser pressionado contra meu pescoço.

Meu corpo reconheceu o perigo e imediatamente me colocou em ação. Ergui o joelho e mirei no estômago. Seu corpo arqueou, a adaga recuou da minha garganta. Sua guarda estava aberta, e eu aproveitei. O contato do meu punho com o rosto de Davi provocou uma explosão de dor em minha mão que se estendeu por todo o meu braço e mandou o garoto pro chão, rolando pela grama enquanto tentava se levantar.

— Seu psicopata de merda! O que você acha que...

— Desculpa, desculpa!

Ele estava de joelhos, com as mãos erguidas ao lado da cabeça. Meus olhos estavam travados na adaga que ele havia perdido. Se tentasse chegar perto dela…

— Desculpa, Lívia. Eu só queria te mostrar, mas não sabia como.

— Do quê você tá falando?!

Ele começou a levantar bem devagar, as mãos ainda erguidas. Deixei que ele se mexesse, mas não baixei a guarda.

— Você deu um nome errado para o que estava sentindo. Preocupação é a palavra, eu acho. Apreensão, talvez. Mas medo é uma criatura diferente.

— Ah, Davi. O que esse seu papo tem a ver com o que você acabou de fazer, seu idiota?

— Como você se sentiu?

O que ele esperava que eu respondesse? Eu sei lá. Nunca consegui entender o que havia de errado com aquele cara.

— Todos os pensamentos abafados por um surto de adrenalina, — ele seguia na retórica — um foco simples e puro no que importa: sobreviver. O medo não é um inimigo, mas sim uma força que quer te manter viva. É bom sentir medo.

Umas três respostas diferentes tentaram sair pela minha boca ao mesmo tempo, uma menos educada do que a outra. Acabei optando por lançar um olhar duro na direção dele.

— Espero que você ainda precise trabalhar bastante no seu projetinho essa noite, garoto. Se precisar dormir, pode escolher um canto na cocheira!

Eu não sei se eu tinha cara de menina perdida, que precisava de um professor. Mas de uma hora pra outra, parece que eu estava atraindo esse tipo de cara que acha que tem alguma obrigação de me "ensinar" alguma coisa. E ainda por cima um garoto com a aptidão social do velho do Jogos Mortais.

Minha irmã também tinha algo importante para me dizer, e não precisou me ameaçar com uma faca para isso.

— Vê se aparece, ok? — ela disse durante um longo abraço, antes de sair pro serviço.

Era o tipo de coisa que a gente sempre diz ao se despedir, nada demais. Mas naquele momento, eu me fiz uma promessa. Iria ver se aparecia, com certeza. Não só quando tivesse um problemão para resolver, mas para uma visita de verdade. Ela merecia isso demais.

Gabi foi para o trabalho e eu passei o resto da noite dentro da casa, sozinha com meus pensamentos e o ronco do seu Clécio, que seria capaz de atravessar uma parede de concreto. Tive tempo para pensar no que Davi tinha tentado me dizer. Conforme minha raiva foi passando, me peguei dando razão para o significado de suas palavras. O medo por si só não era meu inimigo. Se o medo tinha o poder de aplacar aqueles pensamentos que giravam na minha cabeça sem sair do lugar, eu preferia sentir medo do que me deixar ser tomada por aquela ansiedade.

Meu pai veio me fazer companhia por volta das 5 da manhã, graças ao poder dos velhos de levantar em horários absurdos. Mas quem sou eu pra julgar os hábitos de sono das pessoas, não é mesmo?

Pensei que ele fosse fazer algum tipo de teste para me mostrar o quanto eu estava despreparada. Mas os assuntos que permeavam nossa conversa não poderiam estar mais distantes do grande problema no horizonte. Aquilo sim me assustou.

Uma hora depois Davi bateu na porta, informando que o Uber deveria chegar a qualquer momento.

— Putz, quanto que sai um Uber até a capital? — perguntei.

Ele só deu de ombros.

Voltei para me despedir de meu pai. Depois de um abraço e algumas palavras encorajadoras, ele remexeu no bolso e colocou algo na minha mão. Era um medalhão dourado, com uma cruz circundada de letras.

— O que é isso?

— Uma medalha de São Bento. Benzida.

— "São"? Mas o senhor virou católico e eu não tô sabendo?

Seu Clécio deu uma risada gostosa.

— Ah, minha filha. Eu pensei que cê já tivesse entendido, mas deixa eu te explicar uma coisa: esses demônios aí, não são os mesmos que o velho Jesus amansou e mandou para os porcos. São coisa mais nova, diferente. E sendo assim — pontuou a pausa na frase com um sinal da cruz — o que funcionar com eles, tá valendo.

Um carro buzinou lá fora. As perguntas teriam que ficar para depois. Meu pai acenou com a cabeça, eu acenei de volta. Nos despedimos assim.

Quando cheguei na rua, Davi estava colocando seu projeto de marcenaria no porta-malas do Uber. Havia prendido os pedaços de madeira um no outro com pequenos elos de corrente. Sentamos um ao lado do outro enquanto o GPS calculava o trajeto.

— Pronta? — ele perguntou.

— Ah, sim. — respondi — Com certeza.