1 Parte 1

As pernas pinicavam com o calor dos lençóis. O ombro esquerdo doía por ficar muito tempo deitada sobre ele. O ar que respirava parecia pesado, seco, quente. Os mosquitos já não a incomodavam mais, pois seus pensamentos frenéticos eram mais rápidos que as asinhas dos insetos.

Rosana se sentou na cama, irritada. Sabia que não dormiria naquela noite, bem como na anterior. Havia semanas que a menina vinha encontrando enorme dificuldade para pregar os olhos. Nem os chás de sua mãe ajudavam. O pai dizia que a levaria até o padre assim que possível, mas o trabalho intenso com a terra dificultava a ida até a cidade. Nem a igreja se atrevia a pisar naquele fim de mundo.

Haviam prometido que a virada do século traria grandes inovações e melhorias ao mundo. Já estavam em 1905 e nada tinha mudado na roça. Rosana ansiava por algo novo em sua vida, já tinha 14 anos e continuava levantar com o cacarejar das galinhas.

As galinhas não deviam cacarejar à noite.

A menina correu para a janela. Um alvoroço tomava conta do galinheiro. As bichinhas pulavam, batiam as asas, gritavam de pavor. Rosana demorou a ver a raposa ligeira pulando a cerca quebrada com a galinha de pescoço partido na boca. Não havia mais nada que a menina pudesse fazer, apenas assistiu a danada correndo colina acima, orgulhosa de sua caçada.

Rosana pensou em acordar o pai e alertá-lo, mas de nada adiantaria. Deixou-o descansar e foi ver as galinhas ela mesma. Acendeu o lampião na cozinha e saiu na noite quente. Ela rezava para que nenhuma outra tivesse sido mordida.

As aves agitadas se acalmaram ao ver a menina se aproximar, reconhecendo a menina que as amava tanto. Seu pai, Severino, dizia que Rosana falava com os animais, só não sabia como. Em uma de suas viagens à cidade, trouxe a ela uma pintura feita num pedacinho de papel menor que a palma de sua mão. "Este é São Francisco. O santo que protege os animais", dissera Severino. Rosana guardou a pintura na gaveta de roupas para que o vento não a levasse embora, sempre tomando cuidado para não amassá-la ao pegar um vestido.

Se deixasse o santo à mostra, teria ele protegido a galinha?

O sangue da azarada abocanhada pela raposa estava bem no meio do galinheiro, visível a qualquer um que averiguasse a cena. Com os pés, Rosana cobriu a mancha com terra. Olhou bem cada uma das galinhas de uma distância que a luz do lampião não as assustasse. Nenhuma delas parecia ter sido machucada. Também não havia sinal de outras raposas no galinheiro.

Foi só na manhã seguinte que, ao encontrar a filha debruçada sobre a mesa da cozinha mais uma vez, Severino e sua esposa, Francisca, ficaram sabendo do ataque da raposa.

— A cerca da frente caiu — Rosana falou com voz pequena, sempre tímida.

— Diacho! Essas sem-vergonha até derrubam a cerca e esse sarnento não faz nada. — Severino falou com o dedo apontado para Abel, o cão de Rosana.

— Não fale assim dele, pai. Por favor.

— Reclamar não vai adiantar, Severino — disse Francisca. — Se apronte e vá arrumar aquela cerca. E não se esqueça do telhado. Logo o Pedro chega aí e eu não quero goteira na cabeça do nosso menino.

Rosana queria revirar os olhos toda vez que ouvia a mãe falar de Pedro. O rapaz tinha se mudado para a capital, havia dois anos, em busca de emprego. Queria dar melhores condições de vida aos pais que viviam na pindaíba, ele dizia. Rosana, no entanto, acreditava que seu segundo irmão mais velho queria apenas sair da roça e explorar o mundo em que vivia. O que a fazia perguntar quando chegaria sua hora de fazer o mesmo, se é que poderia.

Ninguém, além de seus pais, parecia estar interessado em viver ali por muito tempo.

O mais velho dos três irmãos, Jorge, tinha os deixado cerca de dez anos antes. Jorge tinha saído de casa enquanto todos dormiam e dava poucas notícias sobre seu paradeiro, às vezes enviava um pouco de dinheiro acompanhado de cartas curtas. Dizia estar morando no Rio de Janeiro e não demonstrava vontade de voltar.

Pedro havia partido para São Paulo, mas estava sempre voltando para visitar a família. Em cada uma de suas visitas, seus pais o paparicavam como um bebê, temendo que o rapaz também os abandonasse completamente.

Francisca e Severino passaram o dia inteiro deixando a casa arrumada para receber Pedro e, quando chegou a noite, deitaram-se na cama e dormiram feito pedra.

Sem seus irmãos para dividir o quarto com ela, Rosana vivia amedrontada na noite. Por isso Abel estava ali para lhe fazer companhia. Os bichos valiam mais que tudo para a menina. Ela morria de medo de que algo pudesse lhes fazer mal, como a raposa. Rosana abraçou o cachorro enorme que dividia a pequena cama com ela, tentando se esquecer da assassina e ladra de galinha. Teria conseguido se não fossem os cacarejos assustados novamente.

Rosana se levantou num salto e correu para a janela. Lá estavam as galinhas agitadas mais uma vez, o mesmo alvoroço no galinheiro da noite anterior.

— Vem, Abel — Rosana chamou.

O cachorro saltou da cama. Rosana se armou com o lampião numa mão e uma vassoura na outra. O cachorro a seguiu, latindo sem saber bem para quê. Nem mesmo sua dona sabia onde estava o ladrão de galinhas. Só enxergou quando era tarde demais e a raposa carregava uma galinha em seus dentes.

A raposa tinha cavado um buraco por debaixo das grades do galinheiro e corrido, mas desta vez não havia cerca quebrada para pular. Rosana e Abel correram até a ladra de galinha, um latindo alto e a outra brandindo a vassoura. Seria o fim da raposa, se ela se importasse mais com sua segurança.

Rosana não acreditou no que viu.

A raposa se enfiou entre o arame farpado, os pelos se enroscavam no arame, a pele era perfurada pelas pontas cortantes. A raposa estava presa. As patas agitadas, os ganidos, a cabeça balançando de um lado para o outro. Ela estava fora de si e não largava sua presa por nada. Debateu-se com ferocidade, arrancando pelos e sangue de si, até se libertar.

Mais uma ladra de galinhas que correu colina acima enquanto Rosana assistia tudo em silêncio, paralisada. Até mesmo Abel estava embasbacado, latia para dentro, como se estivesse incerto sobre agir ou não.

A menina acariciou o pelo cinzento do cão e o chamou para dentro da casa.

Quando Severino acordou pela manhã, se deparou com a caçula sobre a mesa mais uma vez. Vê-la ali já não o surpreendia mais, por isso seguiu em sua busca matinal ao bule de chá.

— Ariranha come sapo? — Rosana perguntou de repente.

— O quê? — Severino perguntou, ainda meio tonto de sono.

— Essa noite eu vi duas ariranhas passarem por aqui, passaram do lado do cercado de trás. Uma tinha um peixe na boca, a outra tinha um sapo. Foram subindo a colina.

Severino riu baixinho, contido. O bule estava cheio de chá feito no dia anterior, frio, perfeito para aquela manhã de verão.

— Você viu coisa, filha. O rio tá longe demais pra aparecer ariranha por aqui. Ficar tempo demais acordado faz isso com a gente. Quando seu irmão chegar, vamos com ele até a igreja, confessar seus pecados e acabar com isso.

— Mas eu não tenho pecados. Eu não fiz nada.

— Fazer nada muitas vezes é pecado também, Rosinha.

Aquilo a machucou. Será que seu pai tinha visto a confusão da noite anterior? Teria ele visto a pobre raposa se mutilar na cerca enquanto Rosana estava paralisada de medo, fazendo nada?

Talvez ela tivesse pecados a confessar. Mas sabia o que tinha visto.

— Antes das ariranhas, eu vi mais uma raposa levando uma das galinhas.

O pai quase se engasgou com sua bebida.

— E tem mais — Rosana falou com um olhar triste.

Ela o levou até a cerca danificada, onde jaziam tufos de pelo de raposa, sangue e pele presa ao arame farpado. Severino estava incrédulo com a história, embora estivesse tudo na frente de seus olhos. Em silêncio, ele pegou a mão da filha, levou-a de volta à cozinha e pararam em frente uma pequena prateleira com uma imagem santa.

— Proteja nossa terra e nossos bichos, meu santo — Severino falou com a imagem.

Ali estava uma pequena escultura de São Jorge. Ficava bem a vista de todos que adentravam a cozinha. Severino dizia que era o santo quem lhes garantia a sobrevivência, a boa colheita, o bem da família e dos animais. São Jorge era mais que um santo protetor, era um membro da família.

Rosana cresceu louvando o santo junto a seu pai. Sabia a oração de cor e rezavam juntos todas as noites. Mas havia um detalhe na imagem que a impressionava. Mesmo sob os pés do cavalo branco, com a lança em sua bocarra e encolhido de medo, o monstro causava arrepios em Rosana sempre que o olhava. À frente da imagem, ela apertava bem os olhos enquanto rezava.

— Por que tem um monstro na imagem de São Jorge? — Rosana perguntou com receio.

— Bem, é a história do santo. — Severino limpou a garganta, preparando-se para contar a história que lhe inspirava. — Num reino da Itália, esse monstro, chamado de dragão, apareceu e aterrorizou os camponeses. Ele comia todos os animais. As pessoas tentaram espantar ele, mas o bicho se escondia na caverna e fazia os bichos atacarem todo mundo que chegasse perto. O rei mandou diversos cavaleiros pra matar a coisa. Nenhum deles conseguiu. Suas cabeças fracas foram dominadas pelo dragão e passaram a trabalhar pra ele. Os cavaleiros levavam gente pro dragão comer. Então sequestraram a filha do rei.

— Uma princesa! — Rosana falou com pavor.

— Foi quando São Jorge chegou. Os outros cavaleiros só pensavam em matar, mas São Jorge tinha algo que eles não tinham: Deus. Nada ruim penetra a cabeça de quem crê em Cristo, minha filha. E São Jorge, com sua lança abençoada, espetou a cabeça daquela lagartixa.

Severino tinha um sorriso orgulhoso em seu rosto. Sabia que podia contar melhor a história, mas estava feliz por poder contá-la mais uma vez. Rosana, no entanto, tinha um olhar assustado e nada contente.

— Então essa coisa existe mesmo? — ela apontava para o dragão com receio de tocá-lo.

— Claro que não, menina. — Severino riu baixinho. — Isso é só uma história, uma... Como é mesmo a palavra? — Ele coçou o queixo, pensativo. — Metáfora! São Jorge não livrou as pessoas do dragão, livrou do inferno. Ele apresentou Jesus pra elas, afastando tudo que não era de Deus. A arma de São Jorge, a lança, simboliza a palavra de Cristo. O monstro é a tentação do coisa ruim. Matar o dragão é a mesma coisa que afastar as pessoas do diabo. Entendeu?

— Então não existe dragão?

Severino negou, tentando acalmar a filha.

— Mas e as ariranhas?

— O quê? — Severino se surpreendeu com a pergunta.

— As ariranhas que eu vi — Rosana explicou. — Elas não estavam comendo, estavam carregando animais mortos. E se elas forem iguais os cavaleiros da história?

— Você anda imaginando coisa demais, Rosinha — o pai falou com descontentamento. — Já te disse que não existe essa coisa de dragão e nem ariranha por aqui! O rio tá beeem lá pra baixo!

A alegria que antes estava estampada no rosto de Severino se desfez em questão de instantes. Estava zangado com aquelas perguntas.

— Agora pegue o martelo e os pregos e vamos arrumar aquela cerca — ele falou. — São Jorge não vai fazer tudo sozinho, precisamos mostrar a ele que merecemos sua benção.

Assim, os dois limparam e arrumaram a cerca, tamparam o buraco cavado pela raposa no galinheiro. Por falta de arame, preencheram os espaços largos das cercas com barbante. E quando chegou a noite, Severino colocou uma cadeira na porta da casa, onde se sentou com um lampião e sua espingarda velha.

— Nenhuma raposa vai se atrever a roubar minhas galinhas — ele falou com firmeza.

Com o tempo, o homem fez uma pequena fogueira ao seu pé. Passou uma semana dormindo na cadeira, guardando seu sustento. Não houve sinal de raposa, tampouco ariranhas. Durante toda aquela semana, Rosana dormiu em sono profundo e tranquilo.

No domingo, acordado pela luz fraca do sol nascente, Severino viu uma carroça se aproximar. A silhueta de um homem saltou e agradeceu o carroceiro, que partiu sem demora. O caroneiro tinha uma maleta numa das mãos e vinha caminhando até ele.

— Pedro! — Severino exclamou em alegria.

Do lado de dentro, Francisca ouviu a animação do marido e imediatamente entendeu o que estava acontecendo. Saltou da cama e correu depressa, de camisola e despenteada. Pedro largou a mala no chão de terra e abraçou forte seus pais.

Rosana acordou com a algazarra na cozinha. Levantou-se devagar, passou a mão pelo cabelo cacheado e o amarrou, limpou os olhos e caminhou devagar até a cozinha. Quase não reconheceu seu irmão, que estava sem aquela barba desgrenhada que cultivava quando estava na fazenda, mas a forma como sua mãe o elogiava não deixava dúvidas.

— Abraço de urso! — Pedro gritou, aproximando-se da irmã mais nova e a apertando com força em seus braços.

— Já comeu, meu filho? A essa hora é claro que não — Francisca não deu tempo para o rapaz responder. — Vou fazer um omelete pra nós.

Não havia discussão, Pedro tinha que comer tudo que lhe era oferecido pela mãe, caso contrário ela se chateava profundamente.

Sentados a mesa, esperando a comida, Pedro logo começou a contar suas histórias de cidade grande, se gabando de como estava vivendo mais do que bem por lá. Pedro trabalhava com costura, operando máquinas e dizia que estava aprendendo a consertá-las. Severino, que nunca tinha tocado numa daquelas coisas, quis saber como funcionavam. Pedro explicava cada detalhe e voltava atrás sempre que o pai tinha dificuldade para entender.

A conversa entediava Rosana, que preferia olhar para Abel e acariciar sua cabeça. A comida ficou pronta quando Rosana já sentia que não aguentaria mais ouvir sobre aquele assunto.

— Eita! Deixa eu pegar a cadeira pra você, benzinho — disse Severino, percebendo que não havia lugar para a esposa se sentar.

O patriarca saiu da casa e voltou com a cadeira nas mãos.

— Por que o senhor tava dormindo nessa cadeira, pai? — Pedro perguntou. — Por acaso você e a mãe brigaram e ela te colocou pra dormir com as galinhas? — riu.

— Não seja bobo, menino — Francisca riu. — Eu jamais faria isso com seu pai. Ele tava é protegendo as galinhas.

O rosto de Pedro se contorceu em dúvida. Severino se apressou a explicar a situação. Pedro ficou horrorizado ao ouvir sobre a raposa que ficara presa no arame farpado. Ouviu tudo calado. Quando o pai terminou a história, só uma pergunta pairou sobre a cabeça de Pedro.

— Ainda está sem dormir, Rosinha?

— Eu dormi essa semana toda. — Rosana respondeu, surpresa com a pergunta repentina. — Estou bem.

— Se voltar a passar as noites em claro, te levo comigo pra São Paulo no final do mês. Tem uns médicos bons por lá que nunca se viu por aqui.

— É mesmo, filho? — Francisca perguntou com curiosidade exagerada.

Então Pedro voltou a falar sobre a vida em São Paulo e não parou. Não foi diferente nas semanas seguintes, todo assunto se voltava para a vida de Pedro. O trabalho na pequena fazenda foi praticamente deixado de lado, o pai mal saía para vender os ovos e legumes que cultivava. A princípio, aquilo irritava Rosana, mas ao menos tinha voltado a dormir e, quando dormia, tudo desaparecia.

O tempo tinha passado tão depressa que já era a última semana de Pedro com a família. Seria a última semana que Rosana precisaria ouvir seus roncos no quarto. Mesmo com o barulho incômodo, a menina dormia bem.

Naquela terça-feira, Rosana acordou renovada, como se tivesse tirado todo o sono atrasado. O céu estava tão bonito, o sol quente na medida certa, o ar úmido e leve. As galinhas cacarejavam alegres, convidando-a a visitá-las. Rosana não pôde resistir e saiu de casa. Enquanto caminhava até o galinheiro, viu o Sr. Geraldo se aproximar da cerca com um carrinho de mão.

— Chame seu pai, menina! — o vizinho gritou com rispidez.

Sr. Geraldo não era assim. Sempre chegava pedindo licença, desejando bom dia. Certamente não trazia coisas boas naquele carrinho de mão. Por isso Rosana não demorou a correr e chamar o pai.

Quando Severino colocou os pés para fora, Geraldo já estava do lado de dentro do cercado, esperando-o. O carrinho de mão estava bem cheio, mas coberto por um pano sujo que ocultava a carga.

— Dia, seo…

— Você dê um jeito nesse seu vira-lata, Severino — Geraldo interrompeu, como se não tivesse tempo a perder com as formalidades. — Cadê ele?

— Calma lá, homem — Severino falou com jeito. — O que houve?

— Eu não tenho calma nenhuma não. Já tô é bem cansado desse pulguento aí. Bicho do cão matou duas cabras minhas.

Com um movimento rápido, Geraldo tirou o pano que cobria o carrinho de mão, revelando uma cabra com uma enorme mordida no pescoço. Rosana pulou para trás com o susto que levou. Seu pai, no entanto, chegou mais perto.

Olhando mais de perto era possível notar que as marcas dos dentes eram profundas, feitas por presas pontudas e grandes demais para um cão. Além da mordida, via-se um arranhão no lombo do animal, feito por garras, julgou Severino.

— Com todo o respeito, seo Geraldo, isso não foi coisa de cachorro, não. — Severino apontou para os arranhões. — Isso aqui é coisa de bicho grande. Além do mais, o Abel é manso demais pra caçar qualquer coisa. Eu posso deixar ele esfomeado dentro daquele galinheiro e ele não vai matar nem umazinha. Passa o dia todo do lado da minha menina.

— Ele dormiu a noite toda comigo, seo Geraldo — Rosana falou baixo, quase inaudível.

O vizinho franziu o cenho.

— Minha outra cabra sumiu, só ficou o sangue — disse Geraldo. — Hoje eu acordei e encontrei essa nesse estado. Não me venha dizer que foi onça porque se fosse eu ia escutar. Se não foi o pulguento, foi o quê?

— O chupa-cabra! — Pedro falou de repente.

Ninguém tinha visto o rapaz se aproximar. Ele estava logo atrás do pai e estava branco feito papel, como se tivesse visto uma assombração. Geraldo olhava para ele com uma cara confusa, estava prestes a perguntar sobre o que ele estava falando quando o rapaz se apressou a explicar.

— Lá em São Paulo tá todo mundo falando desse chupa-cabra. Parece que veio lá do México, passou pelo Chile, Bolívia e outros lugares. Ele adora sangue de cabra, bebe tudo. — Pedro engoliu em seco. — Mas pra já estar aqui, é porque tá botando ovos, se procriando. Ai meu Deus!

Rosana estava aterrorizada com a história. Nunca tinha ouvido falar de um animal daquele tamanho que bebesse o sangue de outros.

— Que bobagem é essa, menino? — Severino gritou em desaprovação.

— É o que tá nos jornais de São Paulo, pai — a voz do rapaz saiu trêmula.

— E desde quando aquela gente entende coisa sobre coisa alguma?

Pedro ficou chocado com a rispidez e a descrença do pai. Logo ele, que parecia sempre tão interessado nas histórias da capital.

— Essa cabra tá pingando sangue e você me vem com uma história dessas? — Severino falava com irritação. Respirou fundo e se voltou ao vizinho com uma mão meio erguida, pedindo desculpas pela situação. — Olha, seo Geraldo, isso tá parecendo obra de jaguatirica. Essas bichas são sorrateiras e, pra ser bem sincero com o senhor, os bichos dessa mata estão ficando cada vez mais espertos. Estão ficando sem comida e pegando os nossos. Perdi duas galinhas em duas noites. Não faz muito tempo. Fiquei de tocaia uns dias e as raposas pararam de se meter por aqui. O senhor devia fazer o mesmo.

Geraldo bufou, insatisfeito com a resposta.

— Eu não vou fazer nada, Severino. Você fala bonito, mas não me convence que isso aqui não é coisa desse seu vira-lata. Eu quero esse bicho preso e, principalmente, quero reembolso pelas minhas cabras perdidas.

Era impossível. Pagar pelas cabras de Geraldo significava gastar mais do que o dinheiro que Pedro dera para eles em sua visita. Não havia forma de se manterem vivos se atendessem às exigências do vizinho.

— Olha, seo Geraldo, eu vou prender o cachorro bem na sua frente. O senhor mesmo pode dar o nó, se quiser. Ele vai ficar preso até a próxima semana. Se nenhuma cabra sua for morta, é porque era o danado mesmo e eu pago pelas cabras. Mas se o senhor perder mais uma cabra e ele estiver preso lá, o senhor me deixa fora disso.

— Mas pai…! — Rosana tentou protestar, mas Severino ordenou que ela se calasse.

Geraldo não pareceu gostar do acordo, tampouco concordou com ele. Pediu que trouxessem o cão e uma corda. A contragosto, Rosana arrastou Abel até as mãos do vizinho. Geraldo decidiu amarrar o cachorro num dos postes de sustentação do galinheiro. Certificou-se de que o nó estava bem apertado tanto no poste quanto no pescoço do animal, quase o enforcando.

Com o vizinho longe da fazenda, Severino voltou para a cozinha, sentou e começou a matutar.

— Não foi o Abel, pai — Rosana falou com os olhos marejados. — Ele dormiu comigo a noite toda. Pergunta pro Pedro.

— Eu sei que não foi ele, Rosinha — Severino respondeu sem erguer os olhos para a filha. — Cachorro nenhum faz aquilo… E não me venha com essas brincadeiras sem graça de come-cabra! — Ele apontou um dedo para Pedro.

— O chupa-cabra não é brincadeira, pai — o rapaz protestou. — Sei que parece loucura, mas já descobriram vários bichos assim por aí. Tem o monstro do lago Ness, na Escócia, o Pé-Grande, nos Estados Unidos... Até dragão já descobriram.

— Dragão? — Rosana perguntou com horror.

— Sim. Foi lá na Índia... Não. Indonésia! Descobriram uma porção deles. Chamam de dragões de Komodo, uma cidade de lá. Eles têm escamas, língua de cobra, asa de morcego, cospem fogo... Igualzinho ao de São Jorge — Pedro apontou o dedo para a imagem do santo.

— Chega! — Severino berrou. — Você não vai blasfemar contra meu santo, moleque! Para de assustar sua irmã com essas histórias idiotas de cidade grande.

Pedro se calou. Sua boca estava entreaberta e tremia com a fúria do pai. Ele nunca tinha falado daquela forma desde que se mudara para São Paulo.

— Vocês estão me distraindo! — Severino respirou fundo. — Se a jaguatirica já atacou duas cabras nessa semana, não vai querer voltar pra mais uma. Eu tenho que dar um jeito de fazer uma delas pegar mais uma cabra. Senão vai ser o nosso fim.

Aquilo ecoou na cabeça de Rosana. Ela sabia que, apesar das dificuldades, poderiam se reerguer, procurar a ajuda de Jorge, poderiam sobreviver. Quem estava com a vida em jogo mesmo era Abel. Seria difícil convencer o vizinho de que o cachorro não voltaria a atacar suas cabras, ele faria seu pai matar o coitadinho.

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